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 Assalto ao céu

 por Alexandre Nodari

Ao descrever a Comuna de Paris de 1871, Karl Marx disse que as massas, ali, tomavam “o céu de assalto”. A imagem do assalto ao céu como mudança radical na ordem do mundo remonta, na tradição ocidental, à mitologia grega. Segundo a Teogonia de Hesíodo, Cronos, o de “curvo pensar”, castra seu pai Urano (o céu), a pedido de sua mãe, Gaia (a terra). Instala-se o reino mundano das coisas e a cronologia que o governa, o tempo linear: é neste sentido que vai a afirmação de Adorno, em Minima Moralia, de que “Historicamente o próprio conceito de tempo se forma com base na ordem da propriedade”. A “irreversibilidade do tempo”, que Adorno liga, como o “tempo abstrato”, à esfera do mito, cria “privilégio do antigo”, o “caráter exclusivo do primeiro”, estabiliza a nova ordem. Mas este “assalto ao céu” é incompleto: do contato entre as gotas de sangue do pênis do céu e a terra, nascem as Erínias (também chamadas de Eumenides, e que dariam nas Fúrias romanas), que introduzem dentro do tempo ordenado e concatenado de Cronos, a presença do passado, a necessidade ambivalente de vingança e justiça, punição e redenção, o que é atestado pelos diversos outros nomes (que não podem ser explicados pela justificativa única do eufemismo) que receberam: Semnai (veneráveis), Maniae (loucas, maníacas), Praxidikaes (fazedoras, aplicadoras de justiça), etc. Por isso, todo assalto ao céu, toda revolução, implica em uma mudança na ordem, não só da propriedade, do governo das coisas, como também da temporalidade: trata-se de usar, liberar o passado represado, não de forma a realizá-lo, mas de modo a fazê-lo explodir o continuumdo tempo linear. Daí a décima-quinta tese de Walter Benjamin sobre o conceito de história: “A consciência de fazer explodir o contínuo da história é própria das classes revolucionárias no instante de sua ação” – sinalizado, por exemplo, na instituição de um novo calendário pela Revolução Francesa e nos tiros disparados contra os relógios das torres na Revolução de Junho.

Se 1968 também foi, como muitos definiram, um “assalto ao céu”, não há como negar uma importante modificação contextual, um outro assalto ao céu que o acompanhou, ainda que em sentido totalmente diferente: a corrida espacial. Hannah Arendt caracterizou o lançamento do primeiro satélite feito pelo homem, em 1957, como um evento ímpar na história humana. A alegria que o evento proporcionava, porém, não estava relacionada tão-somente à maravilha da capacidade humana: era, também, uma alegria de alívio, pois o homem parecia dar seus primeiros passos para fugir do aprisionamento da Terra, desse mundo. Um outro mundo, no sentido mais literal, passou a ser possível, como também um novo começo. Hoje, quando fica cada vez mais patente a inviabilidade do sistema econômico vigente na sua relação com a natureza (aquilo que Paulo Arantes chamou de “programa suicida do capitalismo”), e a viabilização da vida humana fora da Terra fica cada vez mais remota, o verdadeiro sentido da corrida espacial transparece no projeto “Guerra das estrelas”: todo “assalto ao céu” é, antes de tudo, uma disputa sobre a Terra. Não há outro mundo. Se 1968 quis colocar a imaginação e o desejo no poder, talvez tenha sido essa a sua falha – imaginação e desejo sempre tiveram no poder, o céu sempre foi o limite. Talvez esteja na hora de colocar a imaginação e o desejo contra o poder, para, com o apoio das Fúrias da Comuna e de 1968, realizar o definitivo assalto, aquele que abole o céu (a hierarquia, a ordem, o tempo), deixando-nos livre para imaginar e realizar as possibilidades do único mundo possível: o nosso.

A
Amor (D.H. Lawrence)
Amor (Flávia Cera)
Antropofagia (Jarry)
Antropofagia (Tejada)
Assalto ao céu
Assistentes

B
Bares proletários

C
Cadeiras
Cara de Cavalo
Caráter
Cartão de visita
Cauda, A
Como
Coroinhas

D
Devir-animal (ou cinismo)

E
Entidade
Espelho
Exterioridades Puras
Experiência(s)

F
Fetiche
Ficha catalográfica

G
Google

H

I
Intrusos
Intrusos (II)

J
Juridiquês

K

L
Libelo

M
Marginal
Metropolis
Mickey Mouse
Moldura Barroca

N
Negatividade

O

P
Página branca
Paráfrase
Partout
Perspectivismos
Pesquisador
Possessão
Profanação

Q
Quixotismo

R
Rio
Rosto (de Lévinas)

S
Saliência

T

U

V
Vestígios (I)
Vestígios (II)

W

X
Xeque-mate

Y

Z


Edicão integral:
PDF | FLASH
 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.