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 Paráfrase
 por Carl Einstein
  (Tradução de Helano Jader Ribeiro)

I
Paráfrase: alguém vê um peixe exposto numa loja, levanta acerca dele uma reflexão biológica, compra-o para a família. Este homem sublima sua refeição em nome de um exercício teórico, se bem que tal tarefa mal poderá influenciar no sabor ou na digestão.

ou: alguém diz que “a alma crepuscular da senhorita Ludmilla Meierson é abaixada como uma bandeira a meio mastro na farfalhante ferrugem avermelhada do outono ensanguentado”, embora ele queira relatar uma façanha boa ou má desta dama.

ou: primeiro canta-se inibidamente para só depois com a subida arborizada da voz flamejante de um tenor: “os lindos cabelos negros de Sabine são como a luz azulada da crista da onda de Adria”, contanto que estes fossem de coloração escura, ou em vez da ensolarada tarde de verão houvesse o silenciar oneroso da noite arqueada.

Mais adiante o já cansado parafraseador com a desvirtude apresenta algo para se diminuir ou elevar, em que ele sempre deixa algo em falta, do qual pode prescindir: por exemplo, senhor Von Gwinn ficara insensível para com a secreta sensação de muralha dos aposentos, quando ele mesmo cuidava das chances do empréstimo turco.

Resumindo, a paráfrase reprime uma noção clara do objeto, é sem fronteiras e reivindica todas as coisas de alegoria subvertida. A paráfrase não tem fim, pois aquele que se prontifica a escrever desencontra alguém deixando certeza precisa e lastimosa. Também pode referir-se a uma jovem, ao amanhecer ou a um tenor entrevistado, na falta de um vocabulário preciso. Assim nos abismamos quando o parafraseador conclui, sobretudo porque ele nunca terá terminado sua tarefa: com certeza, ele retorna sempre ao antigo, para continuar suas frases. O parafraseador repete em tempo indevido, principalmente quando ele puxa pelos cabelos imaginários de sua visão. Só assim ele encontra uma rara e deliciosa parábola.

II
Paráfrase: algo seguro para se desfilosofar e para usar como pretexto em caso de ocorrência. Tomasse o homem um objeto filosófico e falasse criticamente sobre ele, concluir-se-ia que ele cairia em pensamentos desesperadamente ou que sequer é um filósofo. Parece original refletir sobre os critérios sociológicos e metafísicos de uma constipação. Sobretudo porque tais pensamentos podem surpreender. Assim quando se fala sobre um Camembert maduro “cujo interior substancial de sua inerte insularidade e do ser em si mistura-se à atmosférica dissociação da engrenagem dinâmica do comportamento dualístico com ar puro e atmosfera de queijo”.

Em contrapartida encontramos o caso do filósofo lírico que profere: “o conceito causal de uma gaivota que corta a calmaria do céu noturno e senil do platonismo e grita por carne e pão nesta frieza montanhosa”.

Por Deus, essa gente não consegue convencer e deixa tudo mais confuso ainda. Realizamos, pois, durante o almoço os atos de Bellachini ou os passos de Pawlowa?

III
Por outro lado apontamos para essa infâmia que é diluir as coisas em um mistério. A língua é composta de palavras pouco concretas assim como este cético “misticismo”. É preferível certo conforto lá e cá e segredar misticamente com os já enterrados olhos no vazio. Sobretudo é muito fácil quando trazemos à tona os fatos e tentamos descobri-los com um místico nada. É necessário tato, precisão e balanço para contar. Assim como um homem que paira sob um lampião de gás sem alterar seu significado, que teoricamente serviria para a iluminação pública, mas que não ilumina o homem já que ele é somente um jogo vaidoso de luz e escuridão, para assim versejar, dado que ambos são com certeza lamparina e caseiro. Claro que não é um atestado de clareza e sentido ofuscar caseiros graças ao poder de iluminação da lamparina e com isso usá-la para escurecer. Não, isso é ruim e deixa contribuintes insatisfeitos. Além disso, tudo vira comparação e a tertium comparationis, uma técnica de confundir. Eu aposto como o caseiro não seria colocado debaixo da lamparina, se ao poeta ocorresse qualquer descrição, por exemplo, qualquer “cristal sob a luz polar incandescente”, o “nível da água de verão incandescido pelo corpo invisível do peixe que nada” ou “as delicadas mãos marcadas pela aliança de mulheres pálidas”. Isso tudo não parece necessário, pelo contrário, é arbitrário. Tão desnecessário quanto a morte do caseiro. Nunca se pode saber se o caseiro mantém o longo discurso porque vai morrer ou se morre pra falar e porque mais um pouco a peça se tornaria enfadonha. Quem sabe o que ele preferiria no lugar de morrer? Talvez dissesse “Ah, foi brincadeira, meus amores, alegria”. Então poder-se-ia despertar inocentes espectadores por mais de três horas através da piada. Por que o homem deve ser levado?

Finalmente para que a arte produza seu efeito (além do óbvio), ela tem que ter compromisso. O parafrisador impõe indiferentes descrenças através de imagens e se prevalece do cansaço do leitor como argumento. 

A
Amor (D.H. Lawrence)
Amor (Flávia Cera)
Antropofagia (Jarry)
Antropofagia (Tejada)
Assalto ao céu
Assistentes

B
Bares proletários

C
Cadeiras
Cara de Cavalo
Caráter
Cartão de visita
Cauda, A
Como
Coroinhas

D
Devir-animal (ou cinismo)

E
Entidade
Espelho
Exterioridades Puras
Experiência(s)

F
Fetiche
Ficha catalográfica

G
Google

H

I
Intrusos
Intrusos (II)

J
Juridiquês

K

L
Libelo

M
Marginal
Metropolis
Mickey Mouse
Moldura Barroca

N
Negatividade

O

P
Página branca
Paráfrase
Partout
Perspectivismos
Pesquisador
Possessão
Profanação

Q
Quixotismo

R
Rio
Rosto (de Lévinas)

S
Saliência

T

U

V
Vestígios (I)
Vestígios (II)

W

X
Xeque-mate

Y

Z


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.