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A cauda
Luis Tejada
(Tradução de Luz Adriana Sánchez Segura)

Aquele sutil grego que amputou a cauda do seu cachorro arrebatado por irônico bom humor, talvez não adivinhasse em toda a sua magnitude o significado profundo, com projeções espirituais, que esse apêndice carnoso e peludo tem em relação com a vida dos animais superiores.

Na cauda reside indubitavelmente o equilíbrio físico, e eu acredito que também o sentido do equilíbrio intelectual dos mamíferos. Dizem-me que um coitado cachorro sem cauda é incapaz de passar por uma ponte estreita – isto, embora não seja verdade, é verossímil e lógico. A cauda é para o animalzinho como a alavanca que o bailarino leva na corda e que lhe ajuda a distribuir as forças e os pesos quando o corpo se inclina demais para um lado ou para o outro. A alavanca é a cauda do bailarino – infunde-lhe confiança, acha-lhe não sei que pontos invisíveis de apoio no espaço e o guia ao longo da corda, sem que se interrompa essa sutilíssima e matemática situação que chamamos equilíbrio.

Ora, um cachorro sem cauda é, ademais, o pequeno ser melancólico e maluco por excelência; ambulante e cheio de leves caprichos, parece que um eixo secreto se quebrou nele, que falta à sua vida uma direção precisa e ordenada, que a sua existência não tem mais razão para ser porque perdeu seu fim ideal. Não me pareceria estranho que esse cachorro se fizesse misantropo e até começasse a elucubrar teorias metafísicas e a se perguntar o que pode haver mais além da vida e qual é o princípio e o fim das coisas. É claro: o infeliz perdeu o sentido do equilíbrio intelectual, se desorbitou, é quase um homem.  

E o homem? A falta, ou melhor, a perda da cauda tem influenciado nele espiritualmente? Porque é inegável que o homem teve cauda: qualquer um pode se convencer pessoalmente, apalpando com discrição os vestígios ancestrais desse adminículo que levavam, completo e móvel, nossos remotos avôs.

No homem atual a falta de cauda é um defeito verdadeiramente essencial, ao que eu não consegui ainda me resignar totalmente. Às vezes na rua, penso que todos os que vão diante de mim, levam-na cuidadosamente enroscada por baixo do paletó, e me assalta a estranha presunção de que sou eu o único que não a tem, transformando-me assim no homem mais desgraçado da Terra.      

Mas enfim, mesmo que ela tenha se extinguido lentamente ou que um deus caprichoso – como Alcibíades ao seu cão – a recortara de um golpe em alguma manhã imemorial, o certo é que essa deficiência tem definitivamente influenciado o homem. Por que, então, afirmava Pascal “que o homem é o único ser imperfeito”, e por que o doutor Garavito costumava dizer que o homem “é um animal louco”? Rogo-vos que mediteis nessas duas frases, buscando a sutil analogia que há nelas. Sim, o homem é um animal louco e imperfeito; uma ruptura primordial descentrara-o, deixara-o sonâmbulo e errabundo na eternidade; cheio de apetites incomensuráveis, de estranhas aspirações, de torturantes meditações, o homem sempre tende a sair da órbita que lhe tem sido designada na natureza. A sabedoria e a perfeição dos outros animais, sobretudo dos que têm cauda, está na submissão inconsciente e maravilhosa ao seu destino. O cavalo, por exemplo, nunca desejaria deixar de ser cavalo; tranqüilo e feliz, vive sujeito ao seu fado, e não procura sair do patamar que lhe corresponde na natureza: é perfeito. O homem, ao contrário, tenta modificar a si mesmo, cheio de ânsias infinitas, complicando a sua existência cada dia um pouco mais – só nele se encontra o desgosto metafísico, a inconformidade transcendental; só ele não é feliz. Em relação aos outros animais, o homem é como o cometa, ambulante e perdido, em relação aos astros que possuem órbita fixa e a percorrem equânimes, simples, humildes, do princípio ao fim dos tempos.

É que ao homem lhe falta uma batuta, uma alavanca, um índice que guie e sustente o seu equilíbrio – ao homem falta-lhe a cauda, um cabo flexível e prodigioso que amarra a inteligência louca à realidade da vida.

(1924)

 


A
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Antropofagia (Tejada)
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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.