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Notas para Literaturas Pós-autônomas III
por Josefina Ludmer
(Tradução de Flávia Cera)

(Publicado originalmente no Blog de Josefina Ludmer)

Em algumas escrituras latino-americanas dos anos 2000 trato de ver modos de imaginar e narrar que são modos de pensar e de ler, e, portanto, formas possíveis de agitação cultural.

Na literatura busco palavras, imagens e movimentos; instrumentos conceituais para pensar, e também p ara imaginar e produzir afecções; procedimentos ambivalentes para fabricar a realidade e completar a volta. O instrumento conceitual (imaginário e afetivo) poderia ser o instrumento crítico.

Depois de escrever Una especulación [Aqui América Latina. Una especulación. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010] tenho mais ou menos claro como é pensar ou imaginar em fusão e em sincronia. E não só na literatura.

Em fusão
A queda do mundo bipolar produz fusões de opostos e desdiferenciação entre os pólos anteriores. Imaginar/pensar/sentir em fusão com palavras como intimopúblico, realidadeficção, dentrofora, abstratoconcreto.

No caso da realidade e da ficção (uma oposição antes bipolar) poderia imaginar-se a fusão do seguinte modo: um pólo come o outro, a ficção come a realidade. Na realidade, a ficção muda de estatuto porque abarca a realidade até confundir-se com ela. É possível que o desenvolvimento das tecnologias da imagem e dos meios de reprodução tenha liberado uma forma de imaginário onde a ficção se confunde com a realidade (o que Beatriz Jaguaribe desenvolve em O choque do Real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p.119). O resultado é a realidadeficção, que não é uma matéria feita das duas, não é uma mescla, uma mestiçagem, um híbrido ou uma combinação, senão uma fusão onde cada termo é, de modo imediato, o outro: a realidade, ficção e a ficção, realidade.

Em sincronia
É outro modo-procedimento de imaginar e pensar que aparece na literatura e por toda parte: o sucessivo se justapõe e o passado está no presente. Cada idéia, cada imagem, cada momento, cada território, contém sua história e seu passado. No trabalho de hoje estão todas as formas-trabalho da história: na família, todas as formas-família; na literatura, a história da literatura.

Para imaginar um território em sincronia, vejamos dois exemplos televisivos da década de 2000, um argentino e outro norte-americano. A ilha urbana de Okupas e a ilha marítima, tropical, de Lost. A ilha é um artefato conceitual, ou um instrumento crítico, diferente da nação.

Em sincronia: na ilha de Lost estão todos seus passados, desde os mitos de fundação até hoje; os personagens anteriores e os originários coexistem no presente e se relacionam: todos são contemporâneos. A história da ilha é seu presente e sua narração. Em sincronia também se imagina a casa velha ou a ilha urbana de Okupas, que é outro território dos anos 2000 que contem sua história até hoje, e também (com os túneis subterrâneos) a história da cidade de Buenos Aires desde a colônia.

As ilhas não estão somente em sincronia com seus passados; também alojam um tipo de sujeitos típicos dos anos 2000: os dentrofora. Essa posição dos personagens é o que desdobram os relatos. É uma posição que se define territorialmente (na ilha) e por sua condição exterior-interior em relação a alguma esfera ou idéia: a cidade, a nação, a sociedade, o trabalho, a família, a lei ou a razão. Os sujeitos da ilha estão ao mesmo tempo fora e dentro dessas divisões: fora e amarrados simbolicamente em seu interior.

As identidades destes personagens estão pluralizadas e multiplicadas para formar, na ilha, comunidades (e guerras) de outros tipos: loiros, okupas, migrantes, gays, freaks, perdidos... As comunidades das ilhas, onde o passado coexiste com o presente, seguem sendo territoriais, mas agora são provisórias e diaspóricas.

Os sujeitos transversais, dentrofora, plurais, provisórios e diaspóricos das ilhas literárias marcam nitidamente a diferença (e a relação) com os sujeitos nacionais, vanguardistas e experimentais, das narrações clássicas do século XX latino-americano. A diferença com as formas dominantes entre os anos 1940 e 1970, que uniam experimentação temporal e narrativa, um tipo de ficção como tensão entre realidade histórica e subjetividade-mito, e um tipo de personagens, ou “sujeitos uno”, encarnações (ou representantes) de alguma nação, alguma classe, algum povo e algum opressor. Esses personagens representavam um tipo de identidade territorial nacional. A nação, os sujeitos uno e a experimentação vão juntas e dão forma aos clássicos do século XX: Pedro Páramo, Cem anos de solidão, Eu, o Supremo. E não só os romances, também os ensaios que queriam definir identidades nacionais eram vanguardistas e experimentais no século XX: Contraponto cubano do tabaco e do açúcar de Fernando Ortiz, de 1940, e O labirinto da solidão de Octavio Paz, de 1950.

Os sujeitos dentrofora de Okupas e de Lost, e de muitas escrituras do 2000, postulam uma posição transversal às divisões e classificações nacionais e parecem borrar a experimentação narrativa. Agora ler é mais fácil, é como ver.
Os sujeitos dentrofora das ilhas dos anos 2000 se carregam de uma politicidade que, como a categoria de ficção, ou da realidade, se encontra em um estado de desdiferenciação: em fusão e em ambivalência.   

Clique aqui para ler Literaturas pós-autônomas (Sopro 20 - Jan/2010)>>



 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.