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Antropofagia
Luis Tejada
(Tradução de Byron Vélez)

 

Já são muito raras, dentro do tedioso panorama cotidiano, notícias tão cheias de emoção, de cor e de penetrante exotismo como esta que nos informavam ontem do litoral: nos planaltos semicivilizados de Bolívar, os índios comeram dois comerciantes. Ou seja, é um caso de antropofagia com todos os seus caracteres primitivos, como hoje quase não ocorre no mundo. Para achar a descrição de uma cena semelhante teríamos que recorrer aos velhos livros sabidos e consabidos de Júlio Verne ou às arcaicas crónicas de Indias.

No entanto, não poderia haver nada mais lógico, mais natural e até mais conveniente que a antropofagia; porque é evidente que a carne humana deve reunir, distribuídas na proporção necessária, as substâncias mais adequadas para o alimento do próprio homem. A carne humana é, em verdade, o produto de uma seleção de nutrientes efetuada nesse misterioso laboratório do organismo; ao come-la, é claro, o nosso corpo não teria o trabalho de eliminar nada ou quase nada; tudo seria nela proveitoso e nutritivo. Eis o alimento completo, perfeito, integral!

Não é muito difícil compreender que, por exemplo, a uma senhorita convalescente, para que robustecesse rápida e completamente, dever-se-ia dar carne de senhorita gorda; e a um boxeador, carne de boxeador; e a uma criança, carne de criança. Cada organismo poderia assimilar assim, facilmente, as substâncias afins de que precisa, em proporção e quantidade matemáticas, e que só podem ser encontradas em outro organismo semelhante.

É indubitável que a ciência moderna está derivando fatalmente para esse conceito terapêutico, o mais lógico e eficaz de todos. Existe hoje uma considerável quantidade de elementos medicinais que não são outra coisa que extratos orgânicos que irão robustecer as partes similares deterioradas ou fatigadas do nosso corpo. E está se propagando a crença científica de que determinadas glândulas humanas, assimiladas de alguma forma pelo organismo, o rejuvenescem e até o ressuscitam: o sumo das glândulas adrenais, injetado no coração, revive os asfixiados e realmente ressuscita as crianças que nascem mortas. Essas não são senão maneiras científicas e indiretas de comer os semelhantes. O velho preceito latino de similia similibus curantur é uma verdadeira insinuação de antropofagia.

Infelizmente, há muito tempo, os preconceitos éticos e sociais, e não sei que avesso conceito de caridade, têm posto a carne do homem civilizado sob a proteção da lei, em forma absoluta. Está estabelecido que todos os animais podem ser comidos, menos um deles. Essa exceção, como todas as exceções impostas violentamente, é um absurdo, algo contra o que terão que reagir, afinal, os próprios homens.

A carne do homem civilizado deve ser, entretanto, simplesmente deliciosa. O homem civilizado é um animal refinado e cuidadosamente cevado; prepara-se ao longo da sua vida toda como para ser comido. O uso de roupas e a seleção especial dos alimentos fazem da sua carne algo tenro, branco e realmente suculento. Há ocasiões em que ao ver, por exemplo, as orelhas pequenas, vivas e cor-de-rosa dessa dama esvoaçante que passa, a primeira impressão que sentimos é a da fome; e pensamos quão agradáveis seriam essas orelhas fritas ou cozidas num molho vermelho de tomate.

Ah, estou confiante que, para bem da humanidade, chegará em breve o dia da liberdade de antropofagia!



Publicado originalmente em: TEJADA, Luis. Libro de crónicas. Bogotá: Tipografía Augusta, 1924.

Fonte da tradução: TEJADA, Luis. Gotas de tinta. Bogotá: Instituto Colombiano de Cultura, 1977. p.266-267.



[Cf. ANTROPOFAGIA
(por Alfred Jarry)]

 

 

 


A

Amor (D.H. Lawrence)
Amor (Flávia Cera)
Antropofagia (Jarry)
Antropofagia (Tejada)
Assalto ao céu
Assistentes

B
Bares proletários

C
Cadeiras
Cara de Cavalo
Caráter
Cartão de visita
Cauda, A
Como
Coroinhas

D
Devir-animal (ou cinismo)

E
Entidade
Espelho
Exterioridades Puras
Experiência(s)

F
Fetiche
Ficha catalográfica

G
Google

H

I
Intrusos
Intrusos (II)

J
Juridiquês

K

L
Libelo

M
Marginal
Metropolis
Mickey Mouse
Moldura Barroca

N
Negatividade

O

P
Página branca
Paráfrase
Partout
Perspectivismos
Pesquisador
Possessão
Profanação

Q
Quixotismo

R
Rio
Rosto (de Lévinas)

S
Saliência

T

U

V
Vestígios (I)
Vestígios (II)

W

X
Xeque-mate

Y

Z


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.