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XXXIV - Notas para a reconstrução de um mundo perdido
O trimestre bobo



Darwin observa que os jovens de cada geração reproduzem os caracteres há muito perdidos. A observação darwiniana deve ser transposta para o terreno psicopatológico e sensorial. As manifestações patológicas anormais são reproduções de uma etapa evolutiva perdida e esquecida e a evolução sensorial e dinâmica do homem indica que o período infantil reproduz aquilo que aconteceu com o homem no seu começo.

O Trimestre Bobo da criança, que se processa da idade zero até três meses, é uma reprodução de um estado de coisas no início da evolução do homem.

Caracteriza o importante Trimestre Bobo da criança, a ausência de sensação gravitacional. A ausência de sensação gravitacional se manifesta correlatamente com a sensação permanente de Fome e com a ausência total do Medo.

O “Trimestre” Bobo é o período do homem sem medo e que precede o importante período do Medo e este Medo se inicia na criança com três meses de idade e na evolução do homem a um milhão e seiscentos e sessenta mil anos atrás. Admitindo a priori o início do Homo Faber há um e meio milhões de anos atrás, correspondendo à idade de um e meio anos na criança que começa a usar objetos para brincar, temos consequentemente a escala: um ano ontogênico é igual a trezentos e trinta mil anos filogênicos. Semelhante análise estabeleceria a idade do homem sobre a terra em um milhão e novecentos e oitenta mil anos. Presentemente nos encontramos em idade escolar filogênica.

Durante todo o Trimestre Bobo da criança, a ausência de sensação gravitacional conduz à sensação observada de Ilusão e de Alegria.

Quanto mais ausente é a sensação de forma gravitacional, maior é a sensação de ilusão e de alegria e maior é a ausência do Medo como também maior é a importante sensação de Fome. O Medo só aparece com a primeira sensação gravitacional, isto é aos três meses de idade e se desenvolve e se desabrocha até aos dois anos.

A alegria varia em razão direta com a Ilusão.

A Ilusão e a Alegria do homem sem Medo e da criança do Trimestre Bobo se manifestam na ponta do aparelho digestivo, o rosto, por meio de expressões típicas: os olhos se arregalam, a boca aberta pronuncia vogais, estamos em pleno Monólogo da Fome e em pleno Balbuceio da criança. Quem não conhece a maneira pela qual as feições do rosto se abrem para a alegria e ilusão ao avistar um alimento predileto!

A sensação gravitacional é provocada pelo estímulo sonoro e aparece simultaneamente com o Medo. O som grave é o primeiro som a provocar a sensação da força gravitacional e conseqüentemente do Medo. Watson observou na criança que o Medo surge como reação a sons graves. O medo de sons agudos é posterior ao medo de sons graves. O medo como reação aos estímulos sonoros aparece aos quatro meses de idade, no fim do Trimestre Bobo que corresponde ao início do período filogênico do Medo.

Durante todo o Trimestre Bobo a criança não brinca (ela só começa a brincar com os próprios membros aos quatro meses) e o homem no seu “Trimestre Bobo” não era sequer um Homo Faber, não havia ainda descoberto a utilidade dos seus membros e muito menos o uso de objetos da natureza para o ato de viver.

O ato de brincar, iniciado aos quatro meses com os seus próprios membros, só se desenvolve em forma hierárquica aos dois anos (início da idéia de chefe), momento em que a criança percebe os seus pares e se exercita nos primórdios do Diálogo e que corresponde filogenicamente à Descoberta da Imagem do semelhante, ao início do homossexualismo e ao início do Ódio e da Alma. Este início do Ódio e da Descoberta da Imagem ter-se-ia dado há um milhão e trezentos e vinte mil anos atrás, que é o ponto das Atividades Articuladas do homem. A hierarquia é uma manifestação de natureza articulada que surge com a Descoberta da Imagem do Semelhante e com o início do Ódio e do Diálogo.

Portanto, vemos que o período de Ilusão e de Alegria (que são expressões básicas de fome), não se alia ao fato de brincar como muitos erroneamente supõem: o brinquedo é uma coisa organizada que só se inicia após o Trimestre Bobo com o aparecimento da sensação da força gravitacional, aparecimento este provocado pelo som grave. Filogeneticamente[,] Ilusão e Alegria estão situados antes do período de esquizofrenia e do Medo. O esquizofrênico do período do Medo só brinca com os seus próprios membros até o momento em que ele descobre a imagem do semelhante.

O Trimestre Bobo, tanto na criança como filogenicamente no homem, se caracteriza pela ausência de sensações e pela ausência de motilidade que antecede as sensações e pela incapacidade do estímulo em provocar reações de Medo, e se caracteriza pela gestação do Monólogo da Fome que é o Balbuceio da criança, proferidos exclusivamente com vogais.

Este Monólogo da Fome se prolonga dramaticamente fora do Trimestre Bobo permanecendo durante todo o posterior período esquizofrênico do Medo até o Ponto Paranóico de descoberta da Imagem do semelhante e a invenção da alma.



Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 29 de setembro de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.