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 Como
 Alexandre Nodari

"O quase (...) é um modo ontológico sui generis"
(Eduardo Viveiros de Castro)

“A metáfora é para o autêntico poeta não uma figura de retórica, porém uma imagem substitutiva, que paira à sua frente em lugar realmente de um conceito”
(Nietzsche)

Premissa: Carl Schmitt dizia que “Todos os conceitos decisivos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados”. Talvez se possa também afirmar o inverso, a saber, que todos os conceitos ontológicos são conceitos políticos metafisicizados.

Na filosofia de Plotino, hoion – palavra grega para “quase”, “como”, “por assim dizer” – possui um valor central, adquirindo o estatuto de um termo técnico: “devemos ser indulgentes com a nossa linguagem: ao falar de Deus (das categorias supremas), é preciso, para se fazer compreender, fazer uso de palavras que uma rigorosa exatidão não permitiria utilizar. Por isso, quando falamos delas, deve-se sempre subentender: hoion [quase, como, por assim dizer]”. Giorgio Agamben, em um livro recente, argumentou que o uso técnico do termo serviria, entre outros, para fixá-lo como “operador (...) [da] indeterminação” entre potência e ato, indeterminação que faria ruir a ontologia clássica, dando lugar à ontologia cristã da efetualidade, em que a vontadeadquire um papel central. Todavia, se o quase, por um lado, marca uma aproximação, algo como um contato, por outro, ele indica uma distância, um afastamento. Poderíamos dizer que é devido a tal separação que hoion possui tamanha importância para Plotino: como a matéria sensível é “como que a expulsa [ekripheisa, lançado para fora] do ser, a totalmente exilada [choristheisa]”, sendo pura potência indeterminada, suas atualizações não passam de “imagens” e “mentiras”: daí que a linguagem, a fala, a escrita, enquanto partes do mundo sensível, são incapazes de exprimir com exatidão a matéria inteligível, o ser, Deus. A matéria é a exilada política do Ser, o quase não-ser, mas que sempre está e está sempre como outra coisa que si mesma. O banimento da matéria da esfera do ser é o equivalente ontológico do banimento platônico dos poetas d’A república.

O que importa destacar, para além de Plotino, é o estatuto paradoxal do como (quo modo), do quase (quam si): uma proximidade tão intensa que chega às raias da indiscernibilidade, e, ao mesmo tempo, uma distância intransponível, ainda que infinitesimal; se essa distância é superada, o quase se dissipa, e o como se torna igualdade.Quase e como indicam, desse modo, algo que está ao modo de outro, à moda de outro. Ou seja, se apresentam como figuras relacionais por excelência, cuja existência (ou subsistência) e compreensão só são possíveis por meio da alteridade: é preciso sempre haver mais de um – e é preciso que haja um espaço entre os termos. Como e quase operam, assim, não como modalizadores ontológicos, mas como marcadores de interstícios ontológicos, ou como marcadores ontológicos do modo (do e no) outro – em suma, como marcadores ontológicos da existência de mundos.

Talvez o estatuto do como seja mais compreensível na ficção, a morada do quase-ser. O chamado pacto ficcional consiste em tomar a “mentira” como se fosse “verdade” (não importa em que nível e ainda sabendo que não seja), criando uma relação mais complexa entre ambas, como argumentou Saer: fazendo do “entrecruzamento crítico entre verdade e falsidade” sua matéria. Nesse sentido, talvez o pacto ficcional seja o arquétipo da constituição política, se acreditarmos como Wilde que a mentira é fundadora das relações sociais. Também por isso, se o Terror político se caracteriza por destruir “as nuanças que constituem essa espécie de líquido intersticial” das sociedades humanas, espaço intermédio responsável pela “circulação vital” (o Terror é justamente a binarização total da sociedade, a conversão do terceiro, do indiferente, em suspeito, em inimigo, anulando todo espaço entre) pode-se dizer que há uma espécie de terror ontológico quando as relações, correlações e correspondências são negadas em nome de uma verdade que está lá fora, de um “reino subterrâneo” descrito por Quentin Meillassoux como um inferno, mas não o inferno que conhecemos, habitado por criaturas, sombras e espectros, mas o reino da pura morte, da ausência de vida e subjetividade, habitado só por conjuntos e mais conjuntos de números – de fato, um verdadeiro inferno. O problema não está apenas em que esta verdade e este fora sejam tão pouco exteriores, mas principalmente em que, para chegar lá, para que esta filosofia do acesso total funcionasse e colonizasse o reino dos mortos por meio do contabilidade, teria que passar pelo guardião da porta do Fora, a figura liminar entre a vida e a morte: o vírus – quase vida e quase morte (tanto Odradek quanto o guarda que está diante da lei).

O que chamamos de mundo ou de política necessita, desse modo, de um inter-esse, de um entre-ser: de um espaço para que possa haver a diferença e, consequentemente, a aproximação. Dito de outro modo: para que haja mundo, é preciso que haja metáforas e não conceitos. A metáfora é a figura ficcional do pensamento, e tem sua enunciação mais sintética por meio do “como”: a face é como uma rosa. Ortega y Gasset, em seu livro sobre o teatro (que ele considera a “metáfora visível”, a “metáfora universal corporificada”), retoma uma observação de Max Müller a respeito dos Vedas: neles, a metáfora não aparece na forma do como, mas “precisamente por meio da negação”: “fortis non leo, é forte, mas não é um leão”. O conceito mobiliza a predicação, a identidade ou seu oposto, enquanto a metáfora cria zonas de quase indiscernibilidade, operando por uma paradoxal aproximação-afastamento.

Segundo Ortega y Gasset, “o ser como” da metáfora“não é o ser real, senão um como-ser, um quase-ser: é a irrealidade como tal”. Esse paradoxo, “a realização da irrealidade” que constitui a farsa, seria produzido pela metáfora (pelo teatro, pela arte, pelo pensamento, etc.) por meio da negação recíproca e incessante das duas realidades aproximadas pelo como (a face e a rosa), criando “uma realidade ambivalente que consiste em duas realidades” – ambivalência que aparece ainda em outro grau, pois a irrealidade como tal é, ao mesmo tempo, “realidade e irrealidade”. Ortega nota que essa situação, a situação do como ser, é sempre instável, inconsistente, ou seja, nunca se torna estável, um status, um estado: nessa negação recíproca que é a afirmação da ambivalência, sempre se corre o risco de ficar com apenas um dos pólos, a rosa ou a flor. A metáfora é uma situação relacional, o marcador da iminência da transformação, da passagem, do acidente: temporalmente é o “pré-instante” de que fala Clarice Lispector, aquilo que está “atrás do pensamento”. Aqui é importante assinalar que o como ser não se constitui pela “negação ontológica do (outro) ser”, para usar a definição schmittiana de inimigo, nem pela formação de uma síntese entre os dois pólos negados, nem tampouco pela simples anulação recíproca (a negação ontológica dos dois), a violência que propiciaria a creatio ex nihilo. A metáfora indica o espaço do inter-esse, do entre-ser, em que as duas realidades, que se negam enquanto realidades, produzem um hiato intersticial de passagem e transição, de indiscernibilidade e metamorfose, mas não de comunhão: “Não é possível determinar”, diz Michel Leiris, “qual é designado pela palavra que lhe é própria e não é metáfora da outra, e vice-versa. O homem é uma árvore móvel, tanto quanto a árvore é um homem enraizado”.

A irrealidade como tal do como ser “não existe em nenhum mundo”, habita “o outro mundo, o verdadeiramente outro”, o “Ultramundo”, o extra-mundo, o mundo do fora ou o fora do mundo – a metáfora é meta-fora, transporte ao fora, e “Essa volta ou versão de nosso ser para o (...) irreal é a diversão”. Mas talvez esse mundo virtual seja o único mundo possível, o único mundo em que há possibilidade, em que há diferença, acidente e transformação. Nesse sentido, a afirmação de um integrante do partido pirata alemão de que a internet é “o lugar onde vivemos”, de que “A web é o nosso campo de existência”, adquire uma profundidade inesperada: o virtual enquanto lugar onde a existência é possível no duplo sentido – de que só naquele campo pode se dar a existência, e de que nele a existência se dá no modo da possibilidade. O virtual, o possível, só se dá com a diferença, com o outro, no inter-esse, no hiato, na iminência. A própria matéria é pura virtualidade: ou seja, sempre estivemos, ou melhor, sempre estamos na internet.

Além de indicar um hiato, um espaço de interesse, de comparar afastando e afastar pela comparção, a palavra “como” designa o ato de comer na primeira pessoa do singular do presente do indicativo: eu como. Se isto é apenas uma feliz coincidência lingüística, a relação entre comer e metaforizar não é casual, como demonstra filosofia de Nietzsche, pensador da metáfora e da devoração, da metáfora da devoração. O ato de comer é sempre um ato de transformação, ambivalente e indecidível: por um lado, incorporação do outro no mesmo; por outro, metamorfose do próprio no outro: “você é o que você come”. Por isso, dizer “eu como” é também afirmar que o eu que come é um como-Eu (dos dois sentidos), um ser liminar (e irreal) que está na situação da “quasidade” (Viveiros de Castro), que está na iminência da transformação. Comer envolve sempre (colocar os) modos à mesa

Na Mensagem ao antropófago desconhecido, Oswald de Andrade afirma que “O ser é a Devoração pura e eterna. Nada existe fora da devoração”. Em toda a sua obra, Oswald sublinha que não há propriamente o ser, que o “ser como tal” não existe, sendo apenas uma coordenada do pensamento. Mas aqui não se trata apenas disso: Oswald não afirma que “o ser é devoração”, mas que “o ser é a Devoração”, que o ser é a própria relação de devoração. O ser, a “estabilidade”, é a relação. O ser é o como, o entre-ser, o quase-ser, o personagem da geodicéia ou da cosmodicéia, o que permite que possamos falar em mundo(s). Mas isto quer dizer que é preciso ter sempre mais de um para haver o como: o comedor e a comida – e que é preciso sempre ter menos de um: pois é preciso ter a distância, o inter-esse, é preciso negar o Um, que é subtraído da equação, seja como resultado, seja como termo. Nada existe fora da devoração, porque o fora é justamente o hiato e a iminência que a devoração implica e pressupõe. Não só a verdade está lá fora, como não pode haver (só) Um. Se Rimbaud afirmou a alteridade ética radical ao enunciar que o Eu é um outro, a metafísica da devoração postula a metamorfose ontológica radical ao formular que Eu como um outro...

 


A

Amor (D.H. Lawrence)
Amor (Flávia Cera)
Antropofagia (Jarry)
Antropofagia (Tejada)
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Assistentes

B
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C
Cadeiras
Cara de Cavalo
Caráter
Cartão de visita
Cauda, A
Como
Coroinhas

D
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E
Entidade
Espelho
Exterioridades Puras
Experiência(s)

F
Fetiche
Ficha catalográfica

G
Google

H

I
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Intrusos (II)

J
Juridiquês

K

L
Libelo

M
Marginal
Metropolis
Mickey Mouse
Moldura Barroca

N
Negatividade

O

P
Página branca
Paráfrase
Partout
Perspectivismos
Pesquisador
Possessão
Profanação

Q
Quixotismo

R
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S
Saliência

T

U

V
Vestígios (I)
Vestígios (II)

W

X
Xeque-mate

Y

Z


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Programa de ação de uma “democracia argentina revolucionária”


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.