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 Cara de Cavalo

 por Flávia Cera

“Qual a nova cara/de cavalo”. São esses versos que iniciam um poema sem nome no qual Oiticica menciona seu amigo Cara de Cavalo. Entretanto, poderíamos transformar o primeiro verso em uma pergunta: qual é a nova cara? Poderíamos tranquilamente dizer que a esta pergunta Hélio deu uma resposta ressaltando o seu caráter político: a homenagem a Cara de Cavalo, segundo ele, dizia respeito a um momento mais ético do que estético. “Tal idéia é muito perigosa, mas é necessário para mim: existe um contraste, um aspecto ambivalente no comportamento do homem marginalizado: ao lado de uma grande sensibilidade está um comportamento violento e muitas vezes, em geral, o crime é a busca desesperada de felicidade”. O caráter ambivalente do homem marginalizado está explicito no nome de Cara de Cavalo, afinal, o que seria um homem com a cara de um cavalo? Nada além de um homem. A idéia de que um hibridismo nos constitui é levada às últimas conseqüências e nos questiona: qual seria o limiar que faz possível distinguir o homem do animal? Seria o mesmo que faz a vida de Cara de Cavalo insistir até hoje (em milhares de rostos que não necessariamente tenham a aparência de um cavalo) em dizer-se vida, em dizer-se humano. Uma sorte de sub-existência. Já não eram mais suficientes os rostos dos Operários pintados por Tarsila do Amaral; foi preciso dar um passo além para trazer à tona esta sub-existência. Para isto, Hélio Oiticica criou os panos – Parangolés que envolviam o corpo, mas deixavam o rosto nu – para expor que a nova cara não requer mais mediação (burgueses-operários; roupa-nudez), mas sim uma “fantasia”: “a roupa se aproxima da fantasia q também (em ambos os casos) não se querem reduzir a ‘mediadoras’ como sejam os objetos ritualísticos a gratuidade originária em ambas as livra não só do role como dos compromissos com mediações ritualísticas livrando-as ao jogo livre do clímax-corpo com as possibilidades abertas ao uso delas”. A imaginação cria esta esfera sem mediação, é a esfera comum do homem, uma esfera do uso. O momento ético de Oiticica ou a esfera da felicidade em sua procura desesperada no “baralho da vida”. A imagem de Cara de Cavalo, a fotografia 3x4 ampliada de sua carteira de identidade, com a qual Oiticica construiria outro bólide, Cara-Cara de Cara de Cavalo, nos defronta com uma imagem que tememos ver, e que não cessa de aparecer: a imagem perturbadora de um bandido nos atrai e afasta com uma certa repulsa e uma curiosidade enorme que revela, como diz Badiou, o século XX marcado pela “paixão do Real”. Ou mais, Hélio Oiticica nos apresenta um rosto dilacerado da margem - o mesmo rosto da África que nos mostrou Raul Bopp - em uma espécie de etnografia de nós mesmos. Desta insistência em se dizer vida, Oiticica volta para nos dizer que esta cara não é nova, é a mesma cara, de novo, um espelhamento – uma sobrevivência: “ele é e existe” – e, continua Oiticica: “não é triste/como artrite que nos acomete/no pântano/ou no apartamento/de cimento/o cimento que cobre o ato/o tato/o crime/que já deixa de ser”. Desta imagem de Cara de Cavalo temos “apenas um tremor/imponderável”, e “não o horror” porque diante dela temos a certeza de que somos nós que estamos ali também, a mesma certeza que teve Clarice Lispector quando afirmou que o décimo terceiro tiro disparado contra Mineirinho a matava. São destes fantasmas que não podemos esquecer e são estes instantes que não podemos perder, já que, com diz Benjamin: “Aquilo que é sempre o mesmo, não é o acontecimento, e sim, o que nele é novo, o choque com o qual nos afeta”. Por isso que a imagem, a imaginação ou a fantasia foram as propostas, os sopros de vida de Hélio Oiticica para devolver potência a esta “cara”, processo que é fundamental para podermos, enfim, formar o novo corpo da humanidade que se expandirá “sem limites para regiões do pensamento aberto em aberto”. 

A
Amor (D.H. Lawrence)
Amor (Flávia Cera)
Antropofagia (Jarry)
Antropofagia (Tejada)
Assalto ao céu
Assistentes

B
Bares proletários

C
Cadeiras
Cara de Cavalo
Caráter
Cartão de visita
Cauda, A
Como
Coroinhas

D
Devir-animal (ou cinismo)

E
Entidade
Espelho
Exterioridades Puras
Experiência(s)

F
Fetiche
Ficha catalográfica

G
Google

H

I
Intrusos
Intrusos (II)

J
Juridiquês

K

L
Libelo

M
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N
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O

P
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Paráfrase
Partout
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Pesquisador
Possessão
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Q
Quixotismo

R
Rio
Rosto (de Lévinas)

S
Saliência

T

U

V
Vestígios (I)
Vestígios (II)

W

X
Xeque-mate

Y

Z


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.