outros números

resenhas

dicionário crítico
(verbetes)

seção arquivo

informativo

contato
(e colaborações)



Borges
de Adolfo Bioy Casares
Barcelona, Destino, 2006


O Borges de Bioy Casares

por Paulo da Luz Moreira

Borges é um calhamaço póstumo, de mais de 1600 páginas, de Adolfo Bioy Casares (1914-1999) com todas as entradas dos seus diários em que se menciona o amigo Jorge Luis Borges (1899-1986). Em geral são descrições de inúmeras conversas que marcaram a amizade dos dois escritores argentinos. As menções a Borges começam quando o autor era um jovem de 17 anos e Borges, já com 32, era já um escritor respeitado na Argentina, e terminam cinqüenta e oito anos depois, três após a morte de Borges na Suíça. Ainda que acompanhado por uma cronologia e um índice/glossário de nomes próprios, falta a essa edição um índice onomástico que permitiria uma leitura tópica, acompanhando a evolução na abordagem a certos assuntos mais ou menos recorrentes nas conversas entre os dois como, por exemplo, os comentários sobre figuras da literatura inglesa como Kipling (que Borges amava) e Joyce (que ele desprezava) e contemporâneos argentinos como Leopoldo Lugones, Güiraldes e Ernesto Sábato.

Qualquer pessoa familiarizada com a biografia de Borges não encontra grandes novidades sobre sua vida pessoal, mesmo porque as conversas dos dois e comentários de Bioy Casares referem-se à literatura ou ao mundo literário; mas ainda assim a impressão de violação da privacidade é marcante. São diálogos privados entre amigos íntimos sem a reserva naturalmente adotada em conversas ouvidas num círculo mais amplo, quanto mais a de uma declaração pública em livro.

Um dos pontos altos do estudo é a relação que Adorno traça entre a irracionalidade sobre a qual se funda o saber do astrólogo – capaz de articular duas esferas racionais (a psicologia popular e a astronomia) sem demonstrar como esta articulação se dá (é um puro argumento de autoridade) – e a racionalização promovida na modernidade, com a divisão social do trabalho e a especialização do conhecimento. A única arma contra este saber autoritário e irracional que a racionalização instrumental produz seria uma teoria crítica capaz da “integração do saber” de que fala Walter Benjamin no seu Curriculum Vitae e no seu comentário ao método do biólogo Edgard Dacqué: “esta integração de áreas, que desmonta as barreiras do conhecimento especializado e do pensar especializado, e que pressiona a unidade e a continuidade da opinião, permanece em contraste distinto com a forma tradicional de tal unidade: o sistema”, pois o sistema não rompe com as fronteiras territoriais entre as disciplinas, apenas as conecta.

Se não estou particularmente convencido sobre a tese da banalidade do mal aplicada aos carrascos de Auschwitz ou em qualquer outro contexto, já me convenci há muito que os escritores, por mais geniais que sejam suas obras, são em geral seres humanos bastante ordinários. Em outras palavras, eu acredito na banalidade do gênio artístico e Borges e Bioy Casares não fogem a regra: nessas conversas íntimas os seus juízos críticos são muitas vezes equivocados e superficiais e suas posições políticas, idem. A dimensão humana, banal, dessas duas figuras exposta em Borges não prejudica em nada a estatura das obras; até pelo contrário. Depois de ler Borges estou ainda mais convencido (convencido de alguma coisa?) que um artista é um gênio única e exclusivamente na medida em que consegue produzir obras geniais, e não o oposto.

Quase no final do livro, na entrada de 8 de outubro de 1985, encontro uma passagem que esclarece meu desconforto, talvez um exemplo das “simetrias e leves anacronismos” da realidade de que fala o narrador de “El Sur”. O já velho Bioy Casares visita uma livraria de Buenos Aires onde um livreiro lhe mostra um documento que acabou de encontrar: uma carta do pai de Bioy Casares a Oliverio Girondo perguntando quem é esse tal Borges “que está corrompiendo a Adolfito”. Bioy Casares comenta o acontecido em seguida: “Más que interesante, me molestó la comunicación. No me gusta sorprender póstumamente a mi padre en una acción que él no previó que yo conocería. Además, me desagrada encontrar a mi padre cometiendo errores que la posteridad muestra como crasos, pero que en su momento no eran tan evidentes.” (1588)

É exatamente isso o que faz inúmeras vezes esse longo e indiscreto livro, tornando públicas as conversas íntimas dos dois amigos e revelando preconceitos raciais, estéticos e políticos às vezes crassos aos olhos de hoje, além de um orgulho nacional algo torpe e expondo figuras públicas grosseiramente como seres humanos banais.

Temo que pessoas que tenham uma uma visão mais romântica do gênio artístico e que o tomem como um iluminado se decepcionarão, ainda que Borges tenha dado inúmeras entrevistas e feito diversas declarações públicas em vida já bastante infelizes. Talvez passe desapercebido a esse leitor desapontado que a genialidade é um milagre feito de papel e tinta: todos os preconceitos e paixões banais, essa massa de idéias e opiniões claramente datadas de dois homens da elite cultural portenha entre os anos 30 e os anos 80 do século XX, desaparecem como mágica no texto literário de Borges e Bioy Casares. Talvez valha a pena escutar ao personagem-narrador de outro conto de Borges que anunciava: “yo vivo, yo me dejo vivir, para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me justifica”.

Edicão integral:
PDF | FLASH

Texto anterior: Conhecimento da América Latina Próximo texto: Cara de Cavalo
 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.