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O dossiê
Conhecimento da América Latina
foi publicado originalmente, em castelhano, na revista Imán (secretariada por Alejo Carpentier), em Paris, no ano de 1931.

Leia também as traduções das colaborações de:

Georges Bataille
Robert Desnos


Conhecimento da América Latina

por Michel Leiris (Tradução de Flávia Cera)

Ainda que seja possível encontrar, na grande massa dos espíritos europeus, uma imagem da América do Norte que, apesar de ser um tanto mendaz, está claramente definida, não ocorre o mesmo com a América Latina. Apesar de estar na moda a arqueologia pré-colombiana e que o México passe por ser o clássico país das revoluções palacianas; apesar de que um número - bastante reduzido, ademais - de intelectuais, não ignore que Isidoro Ducasse nasceu em Montevidéu; apesar de que uma quantidade de gente que antigamente dançava o tango freqüente agora os bailes antilhanos, só se possui na Europa uma noção muito vaga desse continente, que se crê muito remoto e dotado de uma singular auréola, cujo resplendor fabuloso está realçado pelas penitenciárias das Guianas e, por outra parte, pelo tráfico de mulheres para Buenos Aires – fatores estes, bem popularizados na literatura criminal.

No que se refere a mim, devo afirmar que fora alguns rudimentos escolares, tomados nos manuais de geografia, não sei quase nada da América Latina. Conheci alguns sul-americanos que sabiam ser amigos encantadores; tropecei com algumas latino-americanas que eram de uma magnífica beleza. Fora isto, vi representar Le carrosse du Saint Sacrement de Próspero Merimee, e li alguns livros, como Costal l’Indien - que Arthur Rimbaud admirava - ou algum relato mais ou menos fantasioso, como o consagrado pelo aventureiro yankee Up de Graff a sua viagem em terras de Los Cazadores de Cabezas del Amazonas; vi filmes como El mantón respandeciente, cuja trama se desenvolve na época da dominação espanhola nas Antilhas, ou como esse surpreendente filme documentário, consagrado a Terra do Fogo e aos seus habitantes, que foi projetado há cerca de três anos em Vieux-Colombier; ouvi belíssimos discos fonográficos trazidos de Cuba por meu amigo Robert Desnos, me apaixonei um tanto pela hipótese da Atlântida e as analogias de alguns que creram encontrar entre as pirâmides do Egito e as de Yucatán; conheci um tio (exatamente irmão do meu pai) que morreu no Rio de Janeiro sendo proprietário de uma loja e progenitor de dezessete crianças – havia se tornado gaúcho em conseqüência de uma discussão com seus pais, que o enviaram a América, sob o pretexto de “domá-lo”; conheço a lenda de Eldorado e as matanças horrorosas cometidas pelos conquistadores sob a máscara medíocre da religião; acabo de saber que o boxeador negro All Brown (quem estimo muito) é oriundo do Panamá; ouvi dizer que na América Latina era costume gastar realmente o dinheiro (a ponto de muitas pessoas consagrarem seu tempo, alternadamente, a arruinar-se e a refazer sua fortuna e, quando vêm para Europa, respondem a quem lhes fazem perguntas acerca do tempo que permanecerão no Velho Continente: “venho para gastar 100.000 pesos” – ou 200.000 ou 300.000, a cifra que preferirem). Creio que com esta enumeração revisei todo o conhecimento que tenho da América Latina.

Pelo que posso julgar, a América Latina, em geral muito católica, teria muito a ganhar (e mais especialmente que qualquer outra terra) se adquirisse mais independência espiritual. Como na Espanha, a austeridade na América Latina é terrível, e resulta triste que esta austeridade pese justamente sobre um continente cujos moradores são tão belos... Entretanto, esta noção do pecado, pelo fato mesmo de estar marcada pelo selo do misticismo católico, é menos antipática, provavelmente, que o puritanismo protestante que perdura nos Estados Unidos, e que logo acabará por inundar o mundo inteiro - se não for retido - com suas concepções utilitárias e higiênicas. Partindo deste dado e enfocando os frios standards da América do Norte, resulta significativo opô-los em certo modo, geograficamente, a riqueza maravilhosa da América Latina, onde florescia faz poucos séculos (ao menos no que se refere ao México) o mais evoluído dos estilos barrocos. Este fato me parece significativo. Ao meu modo de ver, a missão histórica da América Latina seria a de contrabalancear no mundo a influência racionalizadora dos Estados Unidos...

Deixando-me levar por esta toada, de tom mais ou menos profético, chegaria até a dizer que a América Latina - outrora terra clássica dos sacrifícios humanos - é o campo eleito para se instaurar uma nova civilização, em certo modo mais violenta que a nossa e, sem dúvida, mais direta e mais sã. Pode-se muito bem imaginar que de uma mescla de raças em que se viram fundidos espanhóis, portugueses, negros e índios; de uma mescla de religiões em que se encontraram sincretizados os sacrifícios sangrentos de deuses e homens ou de animais - desde os cometidos pelos maias até os que levados a cabo por cristãos - passando pelo culto vodu que tem hoje adeptos nas Antilhas, e as corridas de touros; de um movimento revolucionário que invertesse os valores econômicos e sociais, sairia um povo com capacidades prodigiosas, uma religião mais adequada que as demais para adaptar-se a certas tendências instintivas do homem, e então teríamos uns Estados Unidos da América Latina, feitos para desempenhar um papel decisivo no equilíbrio universal, frente aos Estados Unidos da América do Norte e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas...

Mas vejo que me afundo até o pescoço na mais perfeita e plenária utopia, já que se trata de suposições inteiramente gratuitas, feitas em completa ignorância das condições reais, e seguindo um vulgaríssimo esquema... Sou obrigado, pois, a reduzir-me ao pequeno número de elementos que conheço ou creio conhecer (o que não é tão diferente como alguns poderiam imaginar), a saber:

que um dos maiores perigos existentes para as antigas colônias espanholas da América Latina é o de cair sob a dominação do capital yankee;

que o Amazonas é um grande rio;

que existem montanhas elevadíssimas nas Cordilheiras dos Andes;

que Santa Rosa de Lima é uma das figuras piedosas mais atraentes;

que quando os habitantes da Terra do Fogo não encontram roupas nos barcos encalhados, usam como única vestimenta uma pele de carneiro voltada contra a direção de onde sopra o vento;

que as cabeças cortadas, mumificadas e reduzidas, que os índios Jivaro preparam, são encantadores objetos para adornar uma lareira;

que a Anaconda é a maior serpente que se conhece;

e que, segundo meu amigo Jacques Baron, que era marinheiro e por isso viajou um pouco, as mais belas casas de prostituição do mundo estão em Pernambuco.

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.