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O dossiê
Conhecimento da América Latina
foi publicado originalmente, em castelhano, na revista Imán (secretariada por Alejo Carpentier), em Paris, no ano de 1931.

Leia também as traduções das colaborações de:

Michel Leiris
Robert Desnos

 


Conhecimento da América Latina

por Georges Bataille (Tradução de Alexandre Nodari)

Já que o mundo se encontra dividido em certo número de partes, ilhadas até agora, tudo o que podemos esperar das civilizações particulares deriva, sem dúvida, das possibilidades de derrubar as barreiras que as separam (a vontade de conservar a fisionomia e o encanto locais aparece unida a uma futilidade desesperadora, à pedantaria sentimental de jornalistas para solteironas de todos os países). Se considerarmos, pois, uma parte tão vasta do mundo como é a América Latina, não importa tanto saber se os costumes que nela se encontram têm em si um valor humano excepcional; resultaria muito mais interessante observar quais seriam os elementos estranhos suscetíveis de corromper e destruir estes costumes. E, ao mesmo tempo, apareceriam como elementos irredutíveis os fermentos tenazes que arriscam, reciprocamente, corromper os costumes das outras partes do mundo.

É impossível, sem dúvida, investigar aqui – ainda que somente de modo aproximado – como poderiam se desenvolver estes intercâmbios, mas o sentido das observações que seguem está unido ao interesse que apresentam tais possibilidades.

***

Entre as influências dissolventes que poderiam vir do Ocidente, deve-se mencionar, em primeiro lugar, o anticlericalismo.

A América Latina é certamente um dos lugares do globo em que a influência do clero e da religião permaneceu mais forte. Porém, seria absurdo deduzir disto conclusões primárias. É mais fácil se liberar do império de uma tradição quando ela ainda se encontra poderosa, do que quando está instalada nos banco, com uniformes de portaria (como acontece nos Estados Unidos). É muito mais fácil vencer um mal quando ainda é tempo de reagir com violência. Neste sentido, as repúblicas latinas da América poderiam desempenhar um papel de primeira ordem na destruição geral de certa moral de opressão e servilismo.

Esta emancipação é tão mais necessária na América, já que indispensável para vencer odiosas tradições sexuais. O dia em que os latino-americanos recordarão com vergonha a vida que obrigaram a mulher a levar durante tanto tempo está, provavelmente, um tanto distante. Todavia, é indubitável que o sistema atual de custódia e dominação que se exerce estreitamente sobre a mulher está condenado a desaparecer, a contragosto das velhas senhoras austeras (esta parte gangrenada da sociedade que causa grandes estragos, mesmo nos países de costumes mais livres). Essa evolução seria interessantíssima na América Latina, na medida em que não poderia corresponder, de modo algum, a uma espécie de afastamento dos prazeres sexuais e a uma honestidade estéril. Somente poderia ter lugar salvaguardando o impulso dos desejos que conservaram toda a sua brutalidade primitiva, e paralelamente a aberta glorificação, não só da virilidade, mas também do caráter humano de uma atividade sexual livre – que não tem outra finalidade, em suma, que a entrega a práticas licenciosas.

Seria muito interessante, é evidente, que raças mais jovens e mais fortes que as nossas chegassem, deste modo, a uma corrupção de costumes, tão generalizada como a que nos caracteriza. E, reciprocamente, seria lícito esperar uma renovação de nossa própria força, que colocaria nossos impulsos à altura dos que agitam os povos da América Latina. Ainda que não se tratasse, nesse caso, de organizar sistematicamente o caos nos países onde os homens levam o espírito do método a seu último grau de perfeição - especialmente quando se trata de fabricar montanhas de cadáveres -, hoje parece inevitável um regresso a costumes mais claramente cruéis e violentos nas populações européias. É, pois, possível (e mesmo bastante verossímil) que os costumes de nossa vida política se transformarão ao ponto de não diferir muito dos da América Latina.

É certo que na Europa não vem à mente de ninguém a idéia de que a surpreendente fraseologia dos políticos burgueses possa nos levar bruscamente até certas bravatas tragicômicas à la Melgarejo [ditador boliviano entre 1864 e 1871, conhecido por ter expulsado o embaixador britânico, forçando-o a deixar a Bolívia montado em um burro]. Por exemplo: ninguém imaginaria um velho soberano europeu ordenando seu exército a atravessar o mar a nado, sob o pretexto, por exemplo, de ir castigar alguma tribo negra da África. Entretanto, é possível prever circunstâncias análogas, em que as cabeças fracas dos Mussolini ou dos Hitler perderiam rapidamente o que lhes resta de aparências normais, para satisfazer plenamente seus anseios de palhaços declamatórios.
A burguesia já não vislumbra muitas saídas, além das aventuras brutais, e tudo o que se pode dizer é que acelera com isto o dia do proletariado, único capaz de varrer os monstros de feira mussolinianos ou hitlerianos, e de liberar ao mesmo tempo – com a destruição da sociedade burguesa incapacitada – impulsos de uma amplitude e de uma prodigiosa grandeza humana.

Uma simples alusão a isto nos mostra, por outro lado, até que ponto estas observações resultam subsidiárias. É indubitável que, seja qual for o país em que nos situemos, a partida que se joga só pode ser definida pelo antagonismo irredutível das classes atuais. Tudo o que possa ser produzido a partir das diversas civilizações só adquire seu verdadeiro sentido ao se relacionar com a revulsão violenta que disto resultará.

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.