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O dossiê
Conhecimento da América Latina
foi publicado originalmente, em castelhano, na revista Imán (secretariada por Alejo Carpentier), em Paris, no ano de 1931.

Leia também as traduções das colaborações de:

Georges Bataille
Michel Leiris


Conhecimento da América Latina

por Robert Desnos (Tradução de Alexandre Nodari; Revisão de Alexander Araya)

Por se situar do outro lado de um oceano que se acreditou, por muito tempo, ser habitado pelas sereias; por conhecer um sol escaldante e constelações distintas das nossas, a América Latina foi presa fácil para o exotismo e as especulações. Ao exotismo devemos certo número de romances feitos para extraviar a imaginação, e uma série de mentiras de viajantes, nada desinteressados e menos tontos do que se poderia acreditar a julgar pela estupidez de seus ditos. À especulação devemos uma leitura da América Latina, sobre a qual se fundaram números estelionatos políticos, neste jovem-velho continente, e mesmo no novo. Não há raças autóctones. Na história e pré-história sopra um vento de invasões e de emigrações. No momento em que se faz passar os normandos, os bretões, os alsacianos, os bascos e os auverneses, por membros de uma hipotética raça francesa, é interessante notar que um privilégio análogo é recusado às nações da América Latina, que alguns querem nos apresentar, a força, como um conglomerado de espanhóis e portugueses, sem pensar que, além das incontáveis alianças com raças negras e indígenas, o simples fato de nascer e viver a milhares de léguas da pseudo-pátria-mãe, já constitui, por si só, uma transformação. Os normandos da Sicília, são mediterrâneos ou Vikings? Latinos ou nórdicos?

O primeiro a sustentar que a história era um “eterno recomeçar”, além de não ter visto o começo, tinha uma estranha noção do que se chama eternidade. Supondo que os brasileiros empreendessem amanhã uma marcha ao oeste, esta emigração, por razões de tempo, de lugar e de espírito, não seria comparável com a que levou o yankee das margens do Atlântico às do Pacífico. Não sou daqueles que desgastam a cambraia de seus lenços lamentando a desaparição de raças exterminadas pelos conquistadores ou de negros maltratados pelos encomenderos. As nostalgias históricas se situam entre as mais desprezíveis. Tais feitos contribuíram a criação do atual estado de coisas, e as raças sobrevivem seguindo um processo de fusão... Aonde estão os gauleses do passado?

As últimas notícias que nos chegam da América Latina, a despeito das censuras nacionais e de Wall Street, nos trazem um duplo ensinamento. Primeiro, nos permitem formular um juízo acerca dos métodos de evolução e de revolução, que foram nossos; nos fazem, além disso, vislumbrar os métodos que o mundo moderno, no que tem de socialmente ativo, promete pôr em prática para o futuro. O que se chama correntemente de “retardo” dessa parte do mundo em relação ao nosso, é, nesse domínio, um progresso instrutivo para 1950. A evolução social de todas estas repúblicas, tão impura, tão caótica, tão louca quanto nos possa parecer, projeta, na verdade, e com evidência, as bases de uma ação nova. No momento em que a gravíssima questão russa promove em todo homem adicto a princípios realmente humanos um “caso” de consciência e de ciência, o “caso América Latina” impõe uma atenção que muitas gerações devem manter para julgar com proveito e atuar com eficácia.

A proximidade do perigo capitalista dos Estados Unidos, com todas as esperanças revolucionárias que acarreta, não é a menor razão pela qual os “técnicos” devem observar a evolução do estado social que se desenvolve desde as margens do golfo do México até o estreito de Magalhães. Nunca se pôde encontrar – nem mesmo na Rússia – tal número de elementos sociais e históricos reunidos na mesma unidade de tempo.

Se não vivermos tempo suficiente para assistir a realização total dos anseios que haverão de nascer nessa efervescente terra virgem e fértil, ao menos teremos, eu o afirmo, a certeza de que esse rincão de terra será o teatro de acontecimentos formidáveis na evolução do estado social do mundo.

Mas interessa primeiro que a evolução da América Latina se leve a cabo em um plano social. O que nos interessa nos abalos deste continente não é saber que um general foi fuzilado por ordem de outro general; que a “liberdade” foi encontrada mais uma vez por um partido ao derrubar outro partido, que, por sua vez, salvará a liberdade na próxima ocasião. O que nos interessa é o destino do cortador de cana cubano, do semeador de café do Brasil e de seus trabalhadores, do peão de gado argentino, do mineiro peruano, do vinicultor chileno. Em quatro palavras: o destino do proletariado.

O México já demonstrou, durante o transcurso destes últimos vinte anos, até que ponto o preocupam estas questões materiais: questão agrária, questão indígena, questão operária. Não há um problema desta natureza ao qual não tenha tentado fornecer uma solução definitiva, e se certas soluções ainda não foram encontradas, é porque tais assuntos não se resolvem em vinte e quatro horas. Já passou a era das revoluções rápidas, equivalentes a uma troca de ministério, em que a tomada do poder só corresponde, de fato, à manutenção de uma orientação política.

Se pudéssemos considerar o México, neste momento, como chefe do continente (por causa da proximidade ao perigo yankee?) não se deveria ver nisso um argumento de hierarquia nacional. O que certas condições materiais permitiram realizar no norte, outras condições econômicas permitirão, sem dúvida, levar a cabo – e talvez mais a fundo – no Brasil ou na Colômbia.

Em suma: na época atual, época em que todo o poder do capitalismo é tributário de uma larga experiência social, de uma técnica apropriada, de planos inflexivelmente realizados, é importante que o proletariado latino-americano não se deixe vencer por esta ciência, pelo capital a serviço do qual trabalha, quer queira ou não.

Menos frases, menos lirismos. Se estes fatores formam parte do meio e da vida, se são úteis e até necessários durante os dias de ação, é, contudo, indispensável bani-los dos programas. Os movimentos futuros devem ser movimentos de classes e não movimentos de minorias, animadas pelas melhores intenções, mas livres de todos os sofrimentos que o choque entre indivíduos faz nascer.

O estado futuro das classes trabalhadoras da América Latina nos interessa mais que o incêndio de tal ou qual palácio, o nome de tal ou qual líder revolucionário, os belos feitos de tal ou qual herói...

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.