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 Vestígios (I)
 por Cristiano Moreira

Paul Valéry disse certa vez que tomava a leitura como um caçador, a floresta. Corria os olhos sobre o texto, entre o emaranhado de cipós, arbustos e folhagens e, quando via algo que o interessava, ele se detinha, mal respirava. O gesto do caçador, do leitor é perceber os e-lementos que circundam o espaço onde ele, estrangeiro, se encontra e onde ele, mímico, pode se camuflar ou ser devorado: no confim inexistente entre seu olhar e o da caça (percebe o movimento, mas ainda não viu). O que resta, portanto, para a conclusão do ato, o que chamamos arte, é a coleta dos vestígios. É o material que o mímico ou caçador, utilizará para estudar e se aproximar da caça, da mesma maneira que o perito saberá onde encontrar a carta desaparecida ou como Giovanni Morelli (1816-1891), saberá a falsidade dos copistas pelos detalhes, vestígios dos métodos dos grandes pintores. Morelli que ‘marcou’ Freud com seu método, saberia dizer a verdadeira obra por detalhes ínfimos como os lóbulos das orelhas ou pela forma dos dedos e unhas próprias de cada pintor (orelhas pintadas por Botticelli, por exemplo).

O caçador (leitor, crítico ou pintor) elabora um traçado, deixa outros rastros, ainda outros vestígios compondo sem que perceba, um imenso labirinto, torna-se refém de seu desejo, caça de si mesmo. Parece ecoar a frase de Monsieur Teste “penso agora nos rastros que um homem deixa no pequeno espaço em que se move todos os dias”. Caso este homem que caminha e cons-trói um labirinto, apagasse seus rastros, poderia enfim esquecer-se de si dentro da floresta e seria então o invisível, não o inexistente, mas o vazio (a imagem erigida do caçador-caça). Ou ainda, do Discípulo de Emaús: “O invisível não é irreal: é o real que não é visto”. Ou de outra maneira, restaria sua imagem apenas como vestígio do que já esteve ali, no cismo da floresta de signos. Para encontrá-lo, novamente recompor os vestígios, encontrar suas vestes mesmo que vetustas. Recompor o traço. Aqui o caçador assume outra forma, cara à Valéry, a do arquiteto. A imagem erguida novamente.

Acontece que na floresta há um repetir de imagens, tudo é muito semelhante assim como um museu ou uma cidade. As imagens se estratificam en abîme, representando a pulsação da mata na repetição floral entre matizes de terracota e clorofila (ayahuasca). Neste espaço se desenvolve o musgo do esquecimento, a passagem do tempo (imagens proliferantes, prenhes). O caçador, dentro da mata, circundado por signos sonoros e visuais, pára e pensa com Pierre Fédida que “il n’y rien à dire de l’image si ce n’est qu’elle est – et ni vraie ni fausse- seulemente et simplement parce qu’elle est ou par ce qu’elle produit”. Trabalhar com os vestígios é ter acesso aos domínios do mágico, do gênio. O caçador (desaparecido? caça?) produzirá uma imagem a qual ele não terá acesso pois o esconderijo muito elaborado por ele se constituirá em cárcere, priva-lo-á de sua obra. E somente quando a natureza tomar este monumento, transformá-lo em ruína, é que será encontrada sua arte reconstituída através dos vestígios e de um movimento anacrônico. A ruína desencadeia o presente de um corpo pretérito nos alerta George Simmel. Diz ainda que as ruínas (vestígios) ‘arquitetônicas indicam que nas partes desaparecidas ou destruídas das obras de arte têm atualizado a presença de outras forças e formas, as da natureza, de tal maneira que o que ainda subsiste nela de arte e o que há nela de natureza constituem uma nova totalidade”. Poderíamos portanto, pensar os vestígios re-configurando-se em uma ultra natureza ou seja, o caçador deve estar atento, pois a relação mimética se dá tanto na caça como sobre ele próprio. A caça iludindo o olhar do predador. O caçador como produto, imitação daquilo a que se punha a caçar. Desta maneira, podemos pensar ainda na potência do vestígio. Potência que interfere na imagem do próprio caçador repentinamente transformado em fantasma assim que sai da floresta, neste espaço portanto somente o rastro, aquilo que resta.

 

A
Amor (D.H. Lawrence)
Amor (Flávia Cera)
Antropofagia (Jarry)
Antropofagia (Tejada)
Assalto ao céu
Assistentes

B
Bares proletários

C
Cadeiras
Cara de Cavalo
Caráter
Cartão de visita
Cauda, A
Como
Coroinhas

D
Devir-animal (ou cinismo)

E
Entidade
Espelho
Exterioridades Puras
Experiência(s)

F
Fetiche
Ficha catalográfica

G
Google

H

I
Intrusos
Intrusos (II)

J
Juridiquês

K

L
Libelo

M
Marginal
Metropolis
Mickey Mouse
Moldura Barroca

N
Negatividade

O

P
Página branca
Paráfrase
Partout
Perspectivismos
Pesquisador
Possessão
Profanação

Q
Quixotismo

R
Rio
Rosto (de Lévinas)

S
Saliência

T

U

V
Vestígios (I)
Vestígios (II)

W

X
Xeque-mate

Y

Z


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.