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Fragmentos políticos

Jean-Jacques Rousseau


Tradução de Pádua Fernandes.
Nota do tradutor: As reflexões presentes nestes fragmentos foram, em geral, incorporadas a obras como Do Contrato social ou princípios do direito político e Considerações sobre o governo da Polônia. A edição da Pléiade apresenta os fragmentos em quatro grupos temáticos. Do último, “Das leis” (o que engloba o direito natural), foram selecionados os que foram aqui traduzidos, com exceção dos dois primeiros, oriundo do grupo precedente, “Do pacto social”. Foram mantidas as repetições e outras marcas de esboço destes escritos, inclusive o uso flutuante das maiúsculas.


[Do pacto social]

1
O povo só pode contratar consigo mesmo: pois, se ele contratasse com seus oficiais, como ele os torna depositários de todo seu poder e não haveria garantia alguma do contrato, isso não seria contratar com eles, mas realmente colocar-se sob sua discrição.

5
Porque estando todos os direitos civis fundados no de propriedade, tão logo este é abolido nenhum outro pode subsistir. A justiça não seria mais do que uma quimera, e o governo, uma tirania, e a autoridade pública, não tendo mais fundamento legítimo algum, ninguém teria mais que reconhecê-la, senão na medida em que fosse constrangido pela força.

 

[Das leis]

1
Remontando à origem do direito político, descobre-se que, antes da existência de chefes, houve necessariamente leis. Foi necessária pelo menos uma para estabelecer a confederação pública, foi necessária uma segunda para estabelecer a forma de governo e essas duas fazem supor muitas intermediárias, da qual a mais solene e a mais sagrada foi aquela por meio de que se fez o compromisso de observar todas as outras. Se as leis existem antes do governo, elas são, portanto, independentes dele, e o próprio governo depende das leis porque é apenas delas que ele retira sua autoridade e, longe de ser-lhes o autor ou o mestre, é apenas seu garante, seu administrador e, no máximo, intérprete.

2
São essas capitulações que fazem o direito e a segurança dos soberanos, e ninguém é obrigado a obedecer aos magistrados a não ser em virtude das Leis fundamentais do estado, Leis às quais os magistrados são obrigados, eles mesmos, a obedecer.

3
Em todo juramento que um ministro ou outro oficial qualquer presta a seu príncipe deve-se subentender sempre esta cláusula: salvo as leis do Estado e a salvação do Povo.

4
O que torna as leis tão sagradas, mesmo independentemente de sua autoridade, e tão preferíveis a simples atos de vontade? Primeiramente, elas emanam de uma vontade geral sempre tendo em consideração os particulares; e também porque são permanentes e sua duração anuncia a todos a sabedoria e a equidade que as ordenaram.

5
Somos livres embora submetidos às leis, e não quando obedecemos a um homem, porque nesse caso obedeço à vontade de outrem, mas, obedecendo à Lei, obedeço apenas à vontade pública que é tanto minha quanto de qualquer um. Ademais, um senhor pode permitir a um o que proíbe a outro, enquanto com a lei, não fazendo exceção, a condição de todos é igual e, por conseguinte, não há senhor nem servidor.

6
Das leis
O único estudo que convém a um bom Povo é o de suas Leis. É necessário que ele reflita sobre elas incessantemente para amá-las, para observá-las, para corrigi-las até, com as preocupações exigidas por um assunto dessa importância, quando a necessidade é bastante premente e reconhecida. Todo Estado que tem mais Leis do que a memória de cada Cidadão pode conter é um Estado mal constituído, e todo homem que não sabe de cor as leis de seu país é um mau Cidadão; dessa forma, Licurgo quis escrever somente no coração dos Espartanos.

7
Se me perguntassem qual é o mais corrupto de todos os povos, responderia sem hesitação que é aquele que tem mais Leis. A vontade de fazer o bem supre tudo, e aquele que sabe escutar a lei de sua consciência não tem necessidade de outras, porém a multidão de Leis anuncia duas coisas igualmente perigosas e que andam quase sempre juntas, saber que as Leis são más e que elas não têm força. Se a Lei fosse clara o suficiente ela não teria necessidade incessante de novas interpretações, ou de novas modificações, se ela fosse sábia o suficiente; e se ela fosse amada e respeitada, não se veriam estas funestas e odiosas disputas entre os Cidadãos para sofismá-la e o soberano para mantê-la. Estas multidões assustadoras de Editos e de declarações que vemos serem emanados diariamente de certas cortes só fazem ensinar a todos que o Povo despreza com razão a vontade de seu soberano, e incitar a desprezá-la ainda mais, vendo que ele mesmo não sabe o que quer. O primeiro preceito da Lei deve ser o de amar todos os outros; porém não é nem o ferro nem o chicote dos Pedantes da corte que o fazem ser observado e, no entanto, sem ele, todos os outros para pouco servem; pois se prega inutilmente a quem não tem desejo algum de fazer o bem.

Apliquemos esses Princípios a todas nossas Leis, ser-nos-á fácil consignar o grau da estima dada a quem as redigiu e a quem elas foram feitas. Por exemplo, a primeira reflexão que se apresenta a respeito da grande compilação de Justiniano é que essa obra imensa foi realizada para um grande Povo, isto é, para h[omens] incapazes de amar suas Leis, por conseguinte de observá-las, e mesmo de conhecê-las; de sorte que, querendo tudo preservar, Justiniano fez uma obra inútil.

10
Um autor moderno que sabe instruir pelas coisas que diz e pelas em que faz pensar, ensina-nos que tudo o que a lei propõe como recompensa, com feito, assim se torna. Não era mais difícil aos Legisladores, pois, incentivar boas ações do que impedir as más. Todavia, eles quase sempre se limitaram a garantir a vingança pública e a regulamentar entre os particulares os conflitos de interesse, dois objetos que deveriam ser os menores da Legislação em um Estado bem constituído.

12
Uma coisa que nunca se consegue admirar bastante nos primeiros Romanos, a única punição trazida pela Lei das 12 Tábuas contra os maiores criminosos era de se tornarem o horror de todos, sacer estod. Pode-se melhor conceber como esse povo era virtuoso somente ao imaginar que o ódio ou a estima pública eram uma pena ou uma recompensa dada pela lei.

15
Os Legisladores sanguinários que, a exemplo de Drácon, só sabem ameaçar e punir parecem com estes maus preceptores que só educam as crianças com o chicote na mão.

16
As Leis e o exercício da justiça entre nós são apenas a arte de abrigar o Grande e o rico das justas represálias do pobre.

23
A respeito dos Povos já corrompidos, é bem difícil verificar o que haveria a fazer que os pudesse melhorar. Ignoro que Leis poderiam fazer esse milagre, mas sei muito bem que tudo está perdido, sem esperanças, quando já são necessários a forca e o cadafalso.

24
[Dos Judeus]

Seja porque nos tempos antigos os homens, mais próximos de sua origem, não tivessem nada que ver com o que estivesse além, seja porque então as tradições, menos disseminadas, morressem em um pronto esquecimento, não se vê mais como antigamente os povos se vangloriarem de serem autóctones, aborígenes, filhos da terra ou da região onde se estabeleceram. As frequentes revoluções do gênero humano têm-no de tal forma transplantado, confundido as nações, que, exceto talvez na África, não resta nenhum na terra que se possa vangloriar de originar-se do país de que se apossou. Nessa confusão da espécie humana, tantas raças habitaram os mesmos lugares e se sucederam ou misturaram que elas não se distinguem mais, e os diversos nomes dos povos não são mais os dos lugares que habitaram. Pois se restam alguns traços de filiação dos Pársis e dos Cimbros, não podem mais ser encontrados em seu antigo território, e não se pode mais dizer que eles formam um corpo nacional.

Mas um espetáculo espantoso e verdadeiramente único é de ver um povo expatriado, sem lugar nem terra depois de dois mil anos, um povo transformado, atacado, misturado com estranhos por mais tempo ainda, não tendo talvez mais nenhum descendente das primeiras raças, um povo separado, disperso pela terra, subjugado, perseguido, desprezado por todas as nações, no entanto conservar seus costumes, suas leis, seu amor patriótico e sua primeira união social quanto todos os laços parecem rompidos. Os Judeus nos dão este espantoso espetáculo, as leis de Sólon, de Numa, de Licurgo estão mortas, as de Moisés, bem mais antigas, vivem ainda. Atenas, Esparta, Roma pereceram e não deixaram mais filhos sobre a terra. Sião destruída não perdeu os seus, eles conservam-se, multiplicam-se, estendem-se por todo o mundo e sempre se reconhecem, misturam-se em todos os povos e com eles nunca se confundem; não têm mais chefes e continuam sendo um povo, não têm mais pátria e continuam cidadãos.

Qual deve ser a força de uma legislação capaz de operar iguais prodígios, capaz de enfrentar as conquistas, as dispersões, as revoluções, os séculos, capaz de sobreviver aos costumes, às leis, ao império de todas as nações, que promete enfim pelas provações superadas superar todas, vencer as vicissitudes das coisas humanas e durar tanto quanto o mundo?

De todos os sistemas de legislação que conhecemos, alguns são seres imaginários cuja própria existência é discutida, outros duraram apenas alguns séculos, outros jamais geraram um estado bem constituído, nenhum, exceto aquele, sofreu todas as provas e sempre resistiu. O judeu e o cristão concordam em reconhecer nisso o dedo de Deus que, segundo um, mantém sua nação e, segundo o outro, castiga-a: mas todo homem, qualquer que seja, deve aí reconhecer uma maravilha única cujas causas divinas ou humanas merecem certamente o estudo e a admiração dos sábios preferivelmente a tudo que a Grécia e Roma nos ofereceram de admirável em matéria de instituições políticas e de estabelecimentos humanos.



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.