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Beleza cadente
Giorgio Agamben

Tradução de Luiz Guilherme Barbosa | Revisão da tradução de Gabriela Cavalheiro. Nota do tradutor: Este ensaio consiste na tradução do original em inglês publicado em: TWOMBLY, Cy. Sculptures 1992-2005. Essays of Giorgio Agamben, Edward Albee, Reinhold Baumstark, and Carla Schulz-Hoffmann. Alemanha: Schrimer/Mosel, 2006. As imagens da capa e desta página são reproduções da obra de Twombly mencionada no ensaio, e foram retiradas de www.cytwombly.info. As traduções dos versos citados são de Dora Ferreira da Silva e estão publicadas em: RILKE, Rainer Maria. Elegias de Duíno. São Paulo: Editora Globo, 1991. Agradeço ao professor Alberto Pucheu o acesso ao texto original.


 

A escultura Sem título, datada de Gaeta, 1984, traz a tradução ao inglês de alguns versos de Rilke, inscritos numa plaqueta em sua base. Não se trata apenas de uns versos antigos, mas dos quatro últimos versos da Décima Elegia e, portanto, de todo o ciclo das Elegias de Duíno. E é precisamente na Décima Elegia que Rilke fala como se descrevesse “uma dádiva inaudita” – mas também uma “tempestade sem nome, um furacão espiritual, durante o qual tudo o que em mim era fibra e tecido se rasga”.

Os quatro versos originais que Twombly transcreve em sua escultura são os seguintes:



Und wir, die an steigendes Glück
denken, empfänden die Rührung,
die uns beinah bestürzt,
wenn ein Glückliches fällt

E nós que imaginamos a ventura em ascensão,
sentiríamos uma ternura imensa,
quase perturbadora,
quando uma coisa feliz cai...

   

Gostaria de me ater um pouco à proximidade entre o movimento neste verso e na escultura de Twombly, o que testemunha sua conexão a Sem título e certamente não é coincidência.

Todos sabemos que a Décima Elegia é uma espécie de rito fúnebre, não cristão, evidentemente, mas egípcio. Próximo ao final, o jovem morto, que tinha atravessado o campo da Lamentação, escala (steigt) em silêncio a montanha de Ur-leid, da Dor primordial. E neste ponto, depois da subida silenciosa, o poeta introduz a imagem vertical da queda:


Aber erweckten sie uns, die unendlich Toten, ein Gleichnis,
siehe, sie zeigten vielleicht auf die Kätzchen der leeren
Hasel, die hängenden, oder
meinten den Regen, der fällt auf dunkles Erdreich im Frühjahr.

Mas se os infinitamente mortos despertassem um símbolo,
em nós, olhai, mostrariam talvez os engastes pendentes [amentos]
das aveleiras vazias, ou a chuva que cai
sobre o reino obscuro da terra em primavera.


Então, como na escultura de Twombly, a ideia aqui é a de uma flor, uma planta em queda. Rilke tinha escrito originalmente “os amentos do salgueiro”, mas sua amiga Elisabeth Aman Volkart enviou-lhe um livro de botânica, e ele descobriu que não é o salgueiro, mas a aveleira (Hasel) que tem flores penduradas. Na sua resposta, Rilke escreve que “quando ouvir pela primeira vez, é precisamente esta queda que o leitor precisa depreender e compreender nos amentos”. A ideia da queda no poema elabora-se em termos métricos por uma verdadeira fenda no segundo e particularmente no terceiro versos, assinalada por um enjambement que interrompe o sentido de modo particularmente súbito com um “ou” desconexo. (A fratura do ramo ou caule na escultura de Twombly parece repetir esta agudeza.)

Nos quatro versos seguintes, que são aqueles transcritos por Twombly na plaqueta, a fratura é ainda mais enfatizada por, em termos métricos, estes versos representarem a quebra de dois versos elegíacos em quatro hemistíquios, como se a cesura interna em cada verso se expandisse a ponto de destruir sua unidade, a ponto de explodi-la em duas metades.

Acredito que tais considerações constituam um viático proveitoso à compreensão do problema formal que Twombly, demonstrando assimilar atentamente a lição da Décima Elegia, propõe na sua escultura sem título. Em poucas palavras, o problema é “O que é beleza cadente?”. Ou, posto ainda de outro modo: “Como podemos dar forma à beleza partida e cadente?”


Chega um momento no processo criativo de todo grande artista, de todo poeta, no qual a imagem da beleza que ele parecia perseguir até então numa escalada contínua de repente se inverte e começa a cair vertiginosamente, por assim dizer. É este momento exato que encontra expressão na peça sem título de Twombly, na quebra da madeira que, revertendo seu movimento ascendente, recua para a terra no ponto em que a plaqueta inscreve o mote rilkeano.

Nas anotações obscuras, algo vibrantes, sobre a tradução de Sófocles, Hölderlin desenvolveu uma teoria da cesura que não parece impertinente lembrar aqui. No corte da costura do verso pela cesura, que por isso chama de “suspensão antirrítmica”, o que surge, escreve Hölderlin, já não é a alternância das representações, o movimento contínuo do tema e do sentido, mas a própria representação, a “palavra pura”. Parece-me que, nesta escultura visionária, Twombly teria conseguido dar uma forma à cesura, dar a ver seu equivalente escultórico. Ao eliminar drasticamente a parafernália floral do Jugendstil[1] rilkeano, ele reduz o problema a seu núcleo formal básico. E como, de acordo com Hölderlin, a cesura mostra a palavra em si, tanto a obra quanto a arte em si mesmas aparecem aqui na quebra e na interrupção do movimento ascendente. O que quero dizer é que a obra não é simplesmente uma representação da cesura, mas é a cesura mesma, em seu movimento, a cesura – a cesura que expõe o núcleo inativo de toda obra, o ponto em que a vontade de arte que a sustenta parece meio cega e suspensa. Por isso, é como se o movimento da beleza cadente não tivesse peso, não fosse fruto da gravidade, mas uma espécie de voo inverso, como aquele em que Simone Weil teve de pensar quando indagou: “A gravidade faz as coisas caírem, as asas fazem-nas subir. Que asas elevadas à segunda potência podem fazer as coisas caírem sem peso?”

Este é o gesto de Twombly nestas esculturas-limite, nas quais toda ascensão é revertida e suspensa, como uma abertura ou cesura entre uma ação e uma inação: Beleza cadente. É o momento de descriação, quando o artista em seu ponto máximo não mais cria, porém descria, o momento messiânico para o qual não há título possível e no qual a arte milagrosamente estaciona [stands still], como que em estado de choque, em queda e em ascensão o tempo todo.



[1] Trata-se do estilo finissecular arquitetônico e decorativo, encontrado em países germânicos na passagem do século XIX ao século XX, e semelhante ao Art Nouveau francês. [N.T.]. [Voltar ao texto]




A poesia que resta
(Eduardo Sterzi)

Edicão integral

 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.