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O SOPRO antecipa o prefácio escrito por Eduardo Sterzi para o livro A poesia agora é o que me resta, de Diego Callazans. Publicado pela Patuá, o livro será lançado no dia 19 de setembro, na Casa Rua da Cultura (Praça Camerino, 210, Aracaju – SE), às 20hrs.

 

A poesia que resta
Eduardo Sterzi



Qual é a potência específica de entoar o poema, desde o início, na forma de um resto, como faz aqui, neste seu primeiro livro, Diego Callazans? E o que é que resta neste resto que é o poema? São os poemas, aí, restos da própria poesia? Da linguagem? Dos discursos próprios e alheios? De um silêncio primordial? Restos da experiência ou, se preferirmos, da vida? Restos de um mundo? É sempre, afinal, depois do fim do mundo – pelo menos, depois do fim de um mundo – que a poesia, esta poesia de uma modernidade in extremis que ainda é a nossa época, começa seu trabalho. Trabalho elegíaco, sim, por um lado, lamentando o perdido. Mas também trabalho reconstrutivo, filológico, que se move entre conjetura e montagem, numa fidelidade ao perdido que, se não anula, de fato, a perda (o que se perdeu perdeu-se mesmo), mantém no horizonte a esperança de alguma restituição, ainda que residual (o que se perdeu não se perdeu de todo). Daí que o poeta cultive uma zona de vagueza ou «penumbra» («nem luz / nem treva»), almejando, porém, alguma inteireza, mesmo que seja aquela do que resta no intervalo: «qual borra / de ocaso, / não ter / o traço / que cinda. // restar / no entre / das falas».

«De tudo fica um pouco», constata Drummond, para logo acrescentar, no desfecho de seu poema, intitulado precisamente «Resíduo»: «Às vezes um botão. Às vezes um rato». Não só dois objetos (etimologicamente, duas coisas jogadas no mundo) menosprezáveis, habitantes invisíveis dos desvãos dos móveis e dos cantos das casas. Um botão: também o pequeno guardião de nossa nudez, mínimo mas eficaz confirmador da pretensa civilidade dos civilizados, signo da contenção de uma humanidade antes livre numa humanidade agora mais razoável. Um rato: bicho que não respeita os limites da casa, agente da sujeira da rua infiltrado na higiene ideal do lar, ameaça de peste que irrompe na sala ou na cozinha, ou mesmo na biblioteca, para roer talvez os livros. Não será o poema – todo e qualquer poema, na medida em que realiza o trabalho da poesia, o difícil e gratuito trabalho da poesia – um ser igualmente irrisório, no qual se confundem, sem contradição, o inanimado (o botão) e o animal (o rato)? Não será ele também um ser que resta, que sempre resta, a despeito de tudo, de todas as destruições e perdas, um ser que se salva e, ao salvar-se, nessa comunidade fulgurante propiciada pela metáfora, nos salva, ao mesmo tempo que nos apavora com sua vida própria e, sobretudo, irredutível à nossa, com sua vida ao rés do chão, ignorante dos lugares reservados para a cultura e para a natureza, para a civilização e para a barbárie, para a razão e para o seu outro (mito, loucura, selvageria)? «Às vezes», diz Drummond. «Agora», diz Diego Callazans. E essas duas marcações temporais, embora à primeira vista tão distintas, talvez circunscrevam um mesmo espaço imaginativo, um mesmo espaço poético que é também ético e político: «às vezes... às vezes...», porque o «agora» – que é a soma de todos os tempos, do passado ao futuro, como o branco é soma de todas as cores – tem a forma de uma intermitência, isto é, de uma improvável continuidade que, justamente porque fundada na imaginação, é também uma explosão de possibilidades.

Mas Diego Callazans, em seu título, não nos diz apenas que a poesia é aquilo que resta, mas que é o que resta para um sujeito determinado que se enuncia pronominalmente como tal: «a poesia agora é o que me resta». Que sujeito é este para quem só resta a poesia? Não será este sujeito, nessa íntima vinculação com a poesia que apresenta como sua única propriedade, também um resto de sujeito, um sujeito que é resto antes do que propriamente um sujeito que resta? Ronaldo Azeredo, o poeta quase secreto do concretismo, resumiu, na fórmula exata com que encerra um poema, esse sujeito residual, que se revela igualmente um sujeito resistente ao se dispor a abandonar todas as ilusões de integridade subjetiva: «resisto. resto. ro». Quando a poesia, experiência de radical impropriedade e desapropriação (das vozes, das formas, dos sentidos), se revela a única propriedade, é porque o poeta, como o rei da fábula, está nu, ao mesmo tempo que, como o menino da fábula, põe às claras tal nudez. Não por acaso, de roupa – de hábito – se fala no poema cujo verso final dá título ao livro, e não por acaso, também, poesia é, aí, outro nome para a nudez que resta além e aquém da vida administrada. Outro poema reitera essa noção, frisando a dimensão louca do contra-hábito a que se aspira: «não pra planilhas, / mas para livros, / fomos cerzidos. // só os delírios / nos dão abrigo». Que livros e delírios sejam quase sinônimos, justamente numa poesia cuja formalização severa recusa qualquer retórica convencional do delírio, não é um dado desprezível. Que tipo de delírio o poeta tem em vista?

A poesia não é, aí, apenas um fazer que resta, algo que só pode ser feito nos intervalos de uma rotina percebida antes de tudo como antipoética, mas, sim, um fazer do resto: um fazer (e não é este precisamente o sentido de poiesis?) próprio do resto, próprio do elemento minoritário – sobrante, sobrevivente – que põe em questão o todo. Ou, dito de modo mais preciso, que põe em questão aquilo que se apresenta como experiência total, mas é, na verdade, totalização forçada, virtual totalitarismo. Significativamente, o poema com que o livro se abre já nos põe diante da poesia como forma de autodesconhecimento e despoder, como forma de um não-saber que prenuncia talvez um saber mais aguçado das coisas: «não sou senhor sequer / do corpo que me veste // nem minha sombra / me reconhece». O nome próprio e as ideias são percebidos como pesos incômodos, que um ato de desapossamento deverá separar do eu poético (que se faz tão mais poético nesse ato): «ideias... dei-as».

Diego Callazans sabe que «a primavera não virá sem luta», mas sabe também que «no cerne habita / ainda o mito». Resistência política e imaginação religiosa grega, atitudes à primeira vista antagônicas, se combinam de modo singular ao longo do livro. Quando o poeta escreve «meu passo – leve / – nem rastro deixa», temos, por um lado, um passo semelhante ao dos «habitantes da cidade» a quem Brecht, no seu «Guia» de sobrevivência na metrópole no qual já se podia entrever a atmosfera irrespirável do vindouro nazismo, recomendava: «Apague os rastros!». Por outro lado, esse passo sem rastro é, mais do que um passo de fantasma, talvez o passo de um deus, como aqueles de que o poeta é devoto (mas não é todo deus um fantasma?). Num livro em que os versos se iniciam quase sempre por minúsculas, chama atenção o fato de que nomes de deuses gregos, assim como de outros personagens e lugares míticos, sejam grafados com iniciais maiúsculas – Zeus, Orfeu, Hermes, Odisseu, Aqueronte... Não só o «Ser» e o «Logos» também o são, mas a «Fonte», a «Treva», a «Ausência». Os delírios de que falava o poema anteriormente citado passam por aí, por um desempossamento do sujeito que se confunde com essa invocação ou reivindicação dos restos dos deuses: dos deuses como restos. Disse Murilo Mendes de Sócrates, no «retrato-relâmpago» dedicado ao filósofo, que este «força os deuses à dialética do real». Poderíamos dizer o mesmo de um poeta para quem «ser imperfeito é divino». É a possibilidade mesma da poesia e, mais amplamente, da arte que, para Diego Callazans, engata nessa imperfeição e nessa divindade. A potência do resto – dos restos – é capaz de arrancar mesmo os deuses de seu esquecimento. Se, por um lado, «os cantos ao silêncio marcham. / as palavras morrem. / os deuses esquecem», por outro, «ainda sopram versos. / a arte é viva para além dos ossos. / os deuses recordam». Que os deuses (os restos) cantem, pelo tempo que reste: «a voz mais bela dura só um sopro». O poeta, embora invoque os deuses constantemente, parece estar cônscio de que, no fundo, a indiferença divina é uma graça superior a qualquer milagre, porque é um dom de liberdade:


que os deuses ajam não espere.
serem alheios nos serve.
um pouco de agrado é manta.
é renda, se mais, de aranha.
a indiferença é uma prenda.



Beleza cadente
(Giorgio Agamben)


Edicão integral

 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.