outros números

resenhas

dicionário crítico
(verbetes)

seção arquivo

informativo

contato
(e colaborações)



Próximo texto:
Moldura Barroca

(verbete)

Edicão integral:
HTML | PDF


Uma linguagem sem precursores

por Silvia Schwarzböck

(Publicado originalmente na revista Todavía – Pensamiento y Cultura en América Latina, n. 21; Buenos Aires, maio de 2009. Tradução de Alexandre Nodari)

Talvez nenhuma experiência estética seja tão intensa como a que oferece um filme. Esse novo tipo de linguagem inventado pelo cinema só encontra precursores entre os contemporâneos.

Quando se começa a ler Kafka – diz Borges –, ele parece único. Mas, mesmo tendo começado a lê-lo há pouco, crê-se reconhecer como kafkianos textos de distintos séculos, gêneros e autores. Uma parábola religiosa em que o maior falsificador termina controlando, sob estrita vigilância, os títulos do banco da Inglaterra; outra em que o amigo invisível de um homem poderia ser Deus; um conto que fala de compradores compulsivos de mapas, atlas, globos terrestres, mapas de linhas de trens e baús, que morrem sem nunca terem saído de sua terra natal; ou outro que imagina um exército invencível que subjuga reinos e atravessa desertos e montanhas, mas que nunca logra chegar a uma cidade que imagina próxima. Todos esses relatos se referem a algo que é fácil de identificar como kafkiano. O paradoxo – continua Borges em “Kafka e seus precursores” – é que todos se parecem com Kafka, sem que se pareçam uns com os outros. O semelhante que possuem, sem Kafka seria inexistente.

Borges, desde logo, quer que o leitor retire de seu ensaio uma lição de moral estética: que o escritor não é original por ser único, mas porque cria seus precursores (o itálico não deve ser mal-interpretado: nenhum autor escolhe quem o precederá; esse trabalho cabe exclusivamente aos leitores). Ninguém, por mais excepcional que seja sua escritura, está capacitado para ser seu próprio precursor.

Esta lição de moral, válida para certos escritores que mudaram a maneira de ler (pode ser Kafka, mas também Proust ou Joyce ou Beckett) e que criaram no século XX um novo público de leitores, não é aplicável ao presente da arte. Um artista, quanto mais contemporâneo for (no duplo sentido de mais consubstanciado com o presente e de idade mais próxima a daqueles que apreciam sua obra), menos possibilidades tem de criar(-se) precursores em épocas diferentes da sua. O que ele inaugura com sua obra, o público não acredita encontrar em artistas de um século atrás. O precursor é cada vez mais um contemporâneo.

A contemporaneidade dos precursores, se bem que possa ser percebida em todas as artes quanto mais nos aproximamos do presente, em nenhuma delas possui tanto peso quanto no cinema. O que para as artes com séculos de história é uma realidade que remonta há pouco, que afeta os últimos cinqüenta anos de sua existência, para o cinema é a única realidade conhecida até o momento.

É que, apesar de o cinematógrafo ser uma invenção técnica do final do século XIX, a linguagem cinematográfica (baseada na montagem e no uso do primeiro plano) nasce e se desenvolve apenas com o diretor norte-americano David Griffith, nas primeiras décadas do século passado. Os precursores de um cineasta, se o público os buscasse em um século que não fosse o século XX, não seriam cineastas, e as linguagens comparadas possuiriam, inclusive, índoles tão diversas que seria justo até mesmo dar ouvidos àqueles que dizem que entre o cinema e o romance, por exemplo, o único elemento em comum é o público. Um público que deseja encontrar um entretenimento que lhe forneça as emoções que se consideram mais intensas: o terror, o riso, o choro. Essas emoções seriam as mais intensas simplesmente por serem as que com menos freqüência se experimentam na vida cotidiana. Griffith, de fato, se inspira em Dickens (o escritor popular por antonomásia) para inventar a montagem alternada e poder assim contar, ao mesmo tempo, uma história de ricos e outra de pobres, que em determinado momento vão se cruzar. Deste modo, junto com a montagem alternada, inventa o suspense. O suspense se soma, a partir de Griffith, ao repertório das emoções intensas que o cinema fornece.

 

A lógica da intensidade

Apelar às emoções intensas é o que faz do cinema uma arte popular. Por serem infreqüentes na vida cotidiana, as emoções que os filmes provocam se convertem no paradigma da intensidade que a vida não tem. “Intenso” se torna sinônimo de “cinematográfico” (como antes havia sido de “romanesco”), e “cinematográfico”, de “intenso”. A intensidade do relato cinematográfico o torna incompatível com todo outro tipo de relato que o tenha precedido na história das artes. Daí que, uma vez inventado o cinema, se inverta a lógica que faz encontrar em certos relatos do passado os traços de certos relatos do presente (o caso do kafkiano, segundo Borges).

Mais inclinado a considerar o pensamento com imagens como imediato, o leitor contemporâneo pode expressar o prazer da leitura dizendo que o livro que lê mereceria ser convertido em um filme, do mesmo modo que outro leitor, concentrado no noticiário policial de um jornal matutino, pode qualificar de “cinematográfico”, mais do que de “romanesco”, um crime sangrento. Porém, ao raciocinar sobre a base de um sentido da intensidade apreendido do cinema, o leitor contemporâneo inverte o critério com o qual Borges ensina a julgar os precursores de qualquer artista. Borges partia, em seu ensaio, do escritor que parece único, e, depois, o leitor descobre que ele não o é, porque ao ler sob sua influência relatos de distintos gêneros, autores e épocas, converte o que esse escritor tem de original em uma qualidade substantivada: o kafkiano, que pode, caso se queira, ser encontrado por todos os séculos. O cinema, em contrapartida, insta a substantivar as qualidades daqueles diretores (Hitchcock, Hawks, Walsh, Ford, Bilder, Minnelli, Sirk...) que fizeram filmes de um grau de intensidade que nenhuma arte anterior ao cinema seria capaz de obter. O que o cinema ensina a julgar como sinônimo do cinematográfico (chamando de “o hitchcockiano”, “o hawksiano”, etc.) é tudo aquilo que indica que o que sucede em um filme não pode suceder na vida tal como o filme o mostra.

Se o tempo, em um filme, não flui como na vida, porque tudo o que ocorre ao longo da metragem é significativo, essa ausência de tempos mortos – que para o espectador se traduz em entretenimento – se converte em um modelo de intensidade que dificilmente outro tipo de relato pode emular. O cinema, de fato, não requer o mesmo esforço nem ocupa o mesmo tempo da leitura. Se os diálogos, em um filme, estão compostos de frases que nunca poderiam ser ditas em uma conversa cotidiana, será essa maneira de falar a que parece ao espectador como a mais dotada de graça e a menos suscetível de entendiá-lo.

Um romance policial, portanto, não é hitchcockiano porque seu falso culpado e seu magistral vilão se pareçam em alguma coisa aos de algum filme de Hitchcock, mas porque a maneira mais intensa de desfrutar do que essa história tem de apaixonante seria em um filme dirigido por Hitchcock. Se um romance parece cinematográfico é porque oferece um tipo de experiência que somente convertida em filme alcançaria seu grau máximo de intensidade. A ação épica da Odisséia pode ser lida como digna do cinema não porque o leitor a julgue tão intensa como a de um filme de guerra, mas porque somente convertida em filme de guerra essa ação épica alcançaria o grau máximo de intensidade que o público pode experimentar sob a forme de catarse.

Quando alguém lê nas páginas policiais dos jornais que os capangas mexicanos, a caminho de executar suas vítimas, ouvem a todo volume os narcocorridos [Nota do tradutor: músicas que tem como assunto de suas letras ações criminais ligadas ao narcotráfico] que cantam sobre o que eles estão por fazer, não exagera se acredita que, literalmente, eles estejam fazendo, com ajuda de uma trilha sonora, seu próprio filme. A expressão coloquial “hacerse la película [N.T.: expressão que designa o ato de imaginar uma cena da própria vida] diz respeito não apenas à capacidade humana de pensar com imagens, mas sobretudo à capacidade de agregar a essas imagens uma intensidade que no cinema se experimenta com menos mediações que no relato literário.

Claro que existem filmes que evitam a intensidade que o espectador atribui ao cinema – os filmes do cinema moderno, que começam a ser filmados, com o neo-realismo e a nouvelle vague, no pós-guerra – e que pretendem que o público busque os seus precursores entre a produção contemporânea das outras artes (o novo romance na literatura, o expressionismo abstrato nas artes plásticas, o minimalismo na música). Eles ensinam ao público uma maneira de experimentar o tempo (de senti-lo no momento da projeção, fazendo com que o espectador não possa esquecer-se de que esteja aí), que tende a fazê-lo parecido ao da vida cotidiana. Por isso, ao renunciar a serem intensos, os filmes deste tipo renunciam também a serem populares e de massa.


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.