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Sergio Chejfec
por Dianna Niebylski

"Todos os grandes escritores são
caminhadores um pouco compulsivos"
Sergio Chejfec é autor de uma extensa obra narrativa, dois poemários, e um volume de ensaios críticos. Seu último romance, Mis dos mundos, foi eleito pela revista Quimera como um dos vinte melhores romances publicados em 2008. O escritor foi convidado pelo Consulado Argentino em Chicago para visitar a cidade em novembro de 2009. Como parte desta visita, proferiu uma conferência na Universidade de Illinois, Chicago. Nesta ocasião, o escritor amavelmente aceitou ser entrevistado diante do público. A entrevista foi conduzida por Dianna Niebylski (doutora em Literatura Comparada e professora de literatura latino-americana e comparada na Universidade de Illinois – Chicago), e gravada e transcrita por Steve Buttes, doutorando da Universidade de Illinois, Chicago e professor da Universidade de Richmond. A tradução do espanhol ao português foi realizada por Alexandre Nodari e Flávia Cera.

Dianna Niebylski Em uma entrevista recente, você sublinha que seus livros não relatam histórias de imigrantes nem experiências que tenham relação com choques culturais entre a cultura judaica e a cultura local latino-americana. Na mesma ocasião, você assinala que isso se deve a sua falta de interesse no registro realista-naturalista e também ao fato de que sua própria relação com a cultura judaica é uma relação “difusa”. De outro lado, em um ensaio intitulado “Marcas en el laberinto: Literatura judía y territorios”, você insiste na importância que pode haver tido, em sua obra, o caráter “fronteiriço, clandestino ou secreto” da escritura e do saber judaicos. Como você indica no artigo, trata-se de uma modalidade do saber que “ocupou o limite, a fronteira que marca o começo do mundo gentio”. Você poderia dizer algo mais sobre este saber “fronteiriço” ou “limítrofe” e sobre o modo que influi em sua escritura?

Sergio Chejfec Meu vínculo com o judaico tem a ver, sobretudo, com a experiência da minha infância e juventude. E isto se relaciona com a idéia de origem. A origem como aglutinamento de experiências, lembranças, sentimentos e formações em geral que formam uma trama subjetiva e, de certo modo, identitária. A origem está composta pelo passado, mas seria um erro dizer que é unicamente o passado. Seria algo como a versão que nós fazemos de nosso próprio passado e o entorno imaginário com o qual seguimos dialogando de um modo bastante secreto até para nós mesmos. Agora, nesta época, em geral se vê o religioso ou o pertencimento étnico como uma espécie de identidade ativa e, em muitos casos, vindicativa. Antes era diferente; essa identidade, pelo menos no caso do judaísmo, podia estar menos orientada para a própria comunidade religiosa. Essa espécie de lassidão em assumir o vínculo com o judaico tem na literatura latino-americana um correlato curioso. Em geral, passa pela representação em chave costumbrista dos choques culturais e da adaptação conflituosa no meio local. Creio que essa é uma espécie de debilidade da literatura judaica latino-americana, na medida em que está atada às condições impostas por alguns conteúdos pretensamente obrigatórios, os quais, em segundo lugar, marcariam formas específicas de ser representados. No meu caso, a verdade é que o judeu não é sempre um tema. Diria que é mais uma presença intermitente, uma base, entre simbólica e emocional, a qual se alude de várias formas. E me parece mais natural conviver deste modo com o judeu. Imaginemos como veríamos um argentino que em cada relato tratasse de expor sua condição de argentino, ou de qualquer outra nacionalidade. Prefiro, portanto, às vezes, descrever a fronteira absoluta e ao mesmo tempo frágil que se trama entre o mundo judaico e o mundo gentio, mas não em termos de descrição física ou realista.

D.N. Os primeiros livros seus que li foram Boca de Lobo e Los incompletos – livros nos quais não há nenhuma referência explicitamente judaica. Contudo, seu modo de narrar e o movimento, ao mesmo tempo reflexivo e digressivo de sua prosa me fez pensar na obra de outros autores judeus. Os percursos ou itinerários multi-direcionais e indiretos que seus romances tomam como projeto narrativo, a sensação de estranheza que provocam muitas de suas reflexões, evocam o fantasma de Kafka, entre outros. Seria justo dizer que Kafka é um dos fantasmas literários que flutuam na galáxia do escritor Sergio Chejfec? Um fantasma menos denso que o de Borges, talvez?

S.C. Li Kafka muito jovem, na adolescência, como tantas pessoas. E foi uma leitura decisiva não apenas em termos literários (diria inclusive que, naquele momento, o literário era algo completamente ausente). Kafka é um escritor que conta por contar, sem intenção de oferecer nenhum ensinamento; por outro lado, estão as suas tendências ou registros fortemente alegóricos, nos quais o significado se torna mais impreciso e inacessível. Muitas vezes são histórias de aprendizagem moral. Moral e fatal, ao mesmo tempo. Kafka é um caso curioso, porque parece não lhe interessar tanto desenvolver uma história, mas expor como ela se desenvolve. Há uma diferença decisiva entre as duas coisas. O primeiro resultado disso é uma espécie de passividade, indiferença, ou aparente frieza do narrador. Quando eu lia Kafka na juventude, era para mim a comprovação de que o mundo havia sido e seguiria sendo algo absolutamente doloroso. Eram leituras completamente emocionais. Mais tarde, se pode ir vendo a ironia, a truculência um tanto fabricada e essa pegada como que de comédia que assumem os personagens de Kafka, como se seguissem um roteiro mais histriônico do que dramático. Borges operava por termos sintéticos, é lógico que tenha convertido Kafka em uns quantos símbolos. Para mim, Kafka representou outra coisa, a possibilidade de entender a literatura como um sistema de alusões, um discurso sobretudo não assertivo sobre a assim chamada realidade nem sobre seu próprio objeto.

D.N. A sua primeira obra publicada, Lenta biografía, é uma tentativa de escrever um romance a partir da autobiografia. Para narrar a sua própria história, entretanto, o narrador acredita ser necessário resgatar a história de seu pai, um emigrante judeu que vem a Buenos Aires fugindo dos desastres da guerra. Contudo, para recompor a história da qual ele não foi nem participante, nem testemunho, o filho conta somente com o mutismo eloqüente, porém generalizado, do pai, e com os fragmentos de lembranças que os amigos de seu pai – outros exilados – contam nas reuniões familiares do domingo, reuniões em que estes amigos se reúnem para medir e comparar – em iídiche, e entre taças de anis – suas versões de fugas e perdas. Esta Lenta biografía tem muito de grafia: o mote da narração é a busca de uma escritura que possa captar o ato de recordar como um projeto da imaginação. Por outro lado, há muito pouco de bios na narração. Não se revela nenhum dado (da história do pai ou do narrador-filho) que não esteja presente nas primeiras páginas do livro. A narração vai se expandindo principalmente através das reflexões do narrador sobre o que significa aprender a evocar uma história. No ensaio que mencionei antes (sobre as “Marcas da escritura”), você fala de uma sensibilidade além de um modo de sabedoria que se associa à escritura judia. Você tinha algum modelo literário ou filosófico em mente ao encarar o seu primeiro romance – e compor uma (auto)biografia – desta maneira?

S.C. Não, não tinha em mente modelos literários ou modelos teóricos, como se queira chamá-los, não estava pensando neles. Pensando na sua pergunta, creio que quando dizia que a literatura judaica ou o pensamento judaico se baseava muito na atividade evocativa, realmente estava me referindo a esta espécie de residência da evocação que é o sentimento da nostalgia. Creio que uma parte constitutiva da sensibilidade judaica é ter, todo o tempo, uma atitude ou um sentimento de nostalgia, o que pode ser, em alguns casos, feliz e, em outros, doloroso. Quanto à Lenta Biografía, como biografia, ou como autobiografia um tanto turbulenta, é, de fato, narrada com a idéia de alguém que quer narrar a história de sua vida, mas que não pode fazê-lo sem conhecer antes a história de seu pai. E como não conhece a história de seu pai, o livro se converte em uma dupla impossibilidade. Então, acaba narrando episódios, alguns deles banais, outros transcendentes ou verídicos dentro da lógica retórica do livro, como uma maneira de suprir e obedecer a esse mandato inicial. Por um lado, parece-me que eu estava um pouco marcado por noções teóricas daquele momento, como o pacto autobiográfico. A autobiografia do século XIX tem como condição implícita um pacto: o pacto da verdade, segundo o qual o leitor assume que tudo o que lerá terá acontecido. Então, concebi o romance como um deslinde com esse gênero; dar-me a oportunidade de falar sobre mim de uma maneira compatível com minha própria sensibilidade e com minhas próprias cartas e materiais literárias. Porém, às vezes, termina-se sendo mais “realista” do que se quer ou do que se espera, porque, de fato, terminei obedecendo ao fato mais decisivo da minha vida, o de que, na minha família, não se contavam histórias. Na minha família, nunca se contava nada. Não me refiro aos fatos da vida, aos diálogos. Refiro-me às histórias familiares, às lendas e procedências. Minha família era como um mundo que havia nascido do presente, sem relações com o passado. Tudo estava esquecido, ou silenciado, ou não valia a pena ser mencionado.

D.N. Em Lenta biografía, intrigou-me a relação com o iídiche. O narrador diz que não fala o iídiche, que não entende o iídiche, e, contudo, parece traduzir e relatar algumas conversas que supostamente acontecem em iídiche. Poderias comentar este aspecto da obra? [Esta pergunta foi feita ao final de minha entrevista pela Dr.a Margarita Saona. Agradeço-lhe por permitir-me incluí-la como parte da entrevista.]

S.C. Bem, é como você diz. Por um lado, se tenho que responder em termos de experiência pessoal, tenho que dizer isto. O iídiche foi a língua falada na minha casa quando eu era muito pequeno; meus pais, uma avó (a mãe de minha mãe), falavam, entre si, em iídiche, e com meus irmãos também, mas como eu não estava entre os primeiros filhos, quando cheguei o iídiche já estava encoberto pelo castelhano. Então, a mim coube entender o que se dizia, mas sem chegar a falar a língua. De algum modo, no romance me sirvo dessa sensação, dessa lembrança, para tratar de reproduzir o espírito que eu sentia em algumas dessas noites familiares, que para mim apareciam dilatadas, muito expressionistas, quanto a gestos, a formas de falar e argumentar, mas que significavam muito pouco, pois não conseguia conhecer os detalhes ou matizes do que se dizia. Contudo, faz alguns meses vi no New York Review of Books, uma extensa resenha-ensaio de Harold Bloom, sobre uma volumosa história do iídiche finalmente publicada integralmente. Somente agora se publicou a obra inteira, em inglês, e Harold Bloom escreveu um comentário bastante extenso sobre ela. Bloom explica quais são, segundo sua própria visão das coisas, os traços mais essenciais deste idioma, notando que é um idioma formado por muito poucas palavras, lexicalmente muito limitado, e que isto é conseqüência do fato de que as comunidades falantes são entre si meio familiares e meio estrangeiras, porque a área de uso do iídiche era um território bastante extenso e compreendia várias nações e idiomas europeus. Um idioma lexicalmente muito pobre, de modo que os falantes tinham que compensar essa pobreza lexical com uma abundância que passava pela diversidade de entonações, de ênfases ou não-ênfases que davam a sua expressão. E neste comentário de Bloom, vi coisas que, por ignorância ou esquecimento, havia perdido. Recordei boa parte do que era minha experiência e do que quis descrever em Lenta biografía, uma sorte de diálogo de gente que se entende com muito poucos instrumentos, mas que possui emoções ou uma subjetividade muito mais proliferante do que sua capacidade lexical permite. É uma situação que eu tinha um pouco apagada e que, mesmo assim, está na base de minha experiência com o idioma.

D.N. Los planetas, como algumas de suas obras posteriores, estabelece uma estrutura narrativa composta de diferentes registros ou gêneros narrativos, no qual o princípio estruturante mais visível é a reincidência do passeio dos narradores ou personagens. Como em outros romances seus, estes passeios abrem um espaço móvel ou transitável de reflexão e freqüentemente são o motivo que serve de eixo à narração. Em geral, pareceria que o passeio (freqüentemente nos espaços urbanos, ainda que distantes das partes mais centrais ou reconhecíveis da cidade) é um cronótopo que lhe permite explorar suas preocupações de índole temática em consonância a uma estética que mistura a imaginação com a reflexão quase ensaística. É evidente que seus passeantes não correspondem à figura do flaneur do século XIX, nem tampouco tem muito em comum com os “drifters” da literatura norte-americana da metade do século XX. Vários críticos e comentaristas de sua obra notaram uma possível filiação entre sua obra e a de Sebald – e também a de Robert Walser, de quem dizes ter lido pouco. Sobre Sebald, você escreveu um artigo e alguns comentários, nos quais mede o que distancia o seu projeto literário do dele. Em seu último romance, no qual volta a se perceber um evidente componente autobiográfico, o narrador comenta que a caminhada – ou o ato de caminhar nas cidades em que se vive ou visita – é um costume que desenvolveu desde criança e que se transformou praticamente no sinal mais distintivo de sua identidade. De modo que a escolha do passeio como tropo ou cronótopo parece inseparável de sua noção de autobiografia. Há outros antecedentes literários que te levaram a escolher o motivo do passeio urbano como o princípio estruturante da maior parte de seus romances? Poderias falar um pouco mais sobre esta possível filiação entre alguns aspectos da prosa de Sebald ou Walser e da sua, referindo-se a este aspecto de seus romances?

S.C. Bem, isso de alguma maneira tem a ver, por um lado, com uma experiência própria, uma preferência e inclinação a caminhar. É algo de que sempre gostei. Muito antes de conhecer Sebald, escrevi relatos nos quais a caminhada é central, um pouco à maneira dos dadaístas, estes grandes caminhadores. Digo grandes porque despojaram a caminhada de toda conotação romântica, algo que Sebald pretendeu restituir. Para mim a caminhada é, por um lado, uma maneira de facilitar o relato. Porque quando se fala de caminhadas se fala do avanço entre a paisagem, e aí já se tem uma espécie de matriz de relato. Por outro lado, sempre admirei os escritores caminhadores: Benjamin, Kafka – Kafka fazia grandes sessões de caminhadas interessadas, seguia desconhecidos pela noite, interessava a ele ver aonde iam. Borges era um grande caminhador; Joyce também caminhava uma barbaridade, tanto quanto Svevo. Para mim, todos os grandes escritores são caminhadores um pouco compulsivos, ainda que não trabalhem nem incorporem as caminhadas em seus relatos.

Nos últimos romances, quando falo sobre experiências deambulatórias nas cidades, caminhar é uma experiência não-entusiasta, não cumpre com a promessa de alguma aprendizagem ou reconhecimento, como é o caso de Benjamin e de outros escritores do século XX. Para mim, a caminhada pela cidade constitui agora uma sorte de decepção, é algo que nos aproxima de uma agonia próxima ao tédio, ou melhor, ao abatimento. É como se, por efeito globalização comercial e da unificação da paisagem das cidades, essa ansiedade e entusiasmo pela caminhada que existiu durante o século XIX e até a segunda guerra – porque se podia encontrar o diferente dentro de cada cidade – houvesse se esvaziado irremediavelmente. A caminhada, para mim, é produtiva precisamente porque é uma atividade bastante decepcionante, mas que não se pode deixar de efetuar porque é parte central da própria sensibilidade de que estamos feitos. Não vejo tanto a relação com Walser; a verdade é que seus livros nunca me chamaram muito a atenção. Sua importância aumentou quando se prestou mais atenção a sua biografia; e neste sentido, é provavelmente um escritor central do século XX, já que sua vida termina inscrita em sua obra, e em especial, se lê a sua vida como uma obra. Sempre admirei Peter Handke e Thomas Bernhard, dois grandíssimos escritores. E ultimamente me emociono diante das descrições naturais de Adalbert Stifter, que obviamente avançam segundo a marcha do passo humano. A emoção diante da paisagem natural de Stifter é bastante estranha, porque é como se deixasse todo o resto, incluindo a própria história, em segundo plano.

D.N. Em muitos de seus romances, os espaços limítrofes do conglomerado urbano de Buenos Aires possuem uma grande ressonância no relato. Até que ponto é pessoal o seu interesse nestes espaços limiares e até que ponto constituem parte de uma reflexão de seu interesse no liminar como qualidade, como modo de ser ou de estar?

S.C. Por um lado, meu grande interesse nestes espaços vem do fato de que vivi vários anos no oeste da chamada Grande Buenos Aires, uma área muito extensa e sem a densidade de Buenos Aires. Ali encontrava-se uma vida muito heterogênea: classe média, classe média baixa, favelas que estavam próximas. Era uma típica zona da Grande Buenos Aires. Por um lado, tem a ver com essa sensação – não sei como chamá-la – de estar adormecido frente àquela paisagem, a qual não se tende naturalmente a representar. Por outro lado também, quando comecei a escrever, gostava de jogar com isso como uma espécie de dimensão física equívoca, um pouco borgeana. Vários escritores fixaram o olhar nestas zonas fronteiriças e indecidíveis, nas quais a cidade se converte em campo. Borges dedicou vários poemas e relatos a esse ponto impossível de precisar. Porque jamais se pode estar parado no local exato onde a cidade deixa de ser cidade e começa a ser campo. Sempre é uma zona muito flexível e imprecisa. Nessa indecisão, nessa zona imprecisa, eu gostava de estar. Porque dela se desprendia, segundo meu ponto de vista, ou podia desprender-se, uma sorte de indefinição ou flutuação genérica. Há um romance impressionante de Claude Simon que se chama Le Jardin des Plantes, no qual faz uma visita a Moscou. Ali encontra o limite da cidade, é incrível. Há uma parede, uma espécie de muro, e ali acaba Moscou e começa um imenso território que é outra coisa.

D.N. Por um lado, quase todos os seus personagens são personagens liminares ou fronteiriços por sua excentricidade. Porém, em algumas de suas obras, os personagens são também marginais pela sua indigência ou por pertencer à classe operária, uma classe que é retratada nos seus relatos como se estivesse a ponto de se extinguir. Estou pensando especialmente em Boca de lobo, El aire, El llamado de la especie, Cinco. Dado que não lhe interessa o âmbito naturalista ou testemunhal dentro do qual normalmente se retratam esses personagens (e estas temáticas), é surpreendente ver a atenção que você dedica a certas modalidades de ser do operário (a troca de roupa entre as adolescentes em Boca de lobo, ou a descrição do operário no estaleiro em Cinco). Creio que o que você busca não é comunicar a idéia de que operário – o animal laborans, segundo a categoria de Hannah Arendt – é um ser capaz de uma relação mais sintética ou mais autêntica com o seu mundo através de sua atividade ou mão-de-obra, ainda que às vezes eu tenha chegado a pensar que parecesse ser assim nas obras que acabo de mencionar. Eu diria que certas cenas nestes livros parecem validar uma forma de ser – a do operário – e um modo de conceber a comunidade que está a ponto de desaparecer, mas sem expressar nenhum tipo de nostalgia por esta perda. Para além do interesse que te provocam esses seres – estranhos e incompletos, mas aparentemente cabais em suas limitações –, você busca explorar algum paralelo estético ou formal entre a mão de obra do operário (ou certos modos de ser do operário) e suas modalidades narrativas?

S.C. Não sei. É difícil falar das intenções porque a tendência é se cotejar com o efeito do livro, que é sempre bastante imprevisível. Posso dizer que, para mim, tudo o que tem a ver com compromisso ético, para chamá-lo de alguma maneira, ou compromisso político, ou algum tipo de correção moral que a literatura pode fazer em relação ao real sempre tem que estar um pouco distanciado, um pouco informe. Há uma larga tradição de literatura realista, comprometida, etc. Ao mesmo tempo, existem outras maneiras de aludir ao real muito mais efetivas, diretas e legíveis que a literatura; por exemplo, os meios e todos os discursos testemunhais. A literatura tem outros mecanismos para desarticular esse vínculo direto de referência. Para mim, uma dessas formas é por em cena a artificiosidade, por exemplo através de personagens saturados de sentido social e literário, como esses operários. Então, muitas vezes opto por apresentar os personagens como se fossem modelos arquetípicos... fazê-los mais reais na medida em que se manifestam como artificiais. Por isso, de pronto essa série de personagens operários, como você diz, são desenvolvidos como mais do que arquétipos, como uma espécie de modelos que tem uma subjetividade muito limitada. Não quero dizer que os proponho como paródias, são como que modelos artificiosos. Creio que, de alguma maneira, a única forma com que a arte pode adquirir aparências de naturalidade é acentuando esse caráter artificioso.

Gosto dos personagens um pouco fronteiriços, que não possuem um referente real, concreto – não gosto da literatura muito referencial. Personagens que poderiam ser personagens de fábula. O esquema da fábula me parece muito atrativo por essa capacidade de irradiação moral que tem a fábula. Porque é a promessa da literatura simples, legível, a literatura útil. Creio que se perdeu essa capacidade, e às vezes a homenageamos de alguma maneira.

D.N. Em geral, todas as suas narrativas exploram a tensão entre a consciência de não poder captar certos espaços da realidade e aquele inominável que se escapa na tentativa – que é quase tudo. Essa tensão se manifesta geralmente através de uma estética da negatividade. Em termos fotográficos, poderíamos dizer que, nos seus romances, quando há cintilações de haver captado uma conexão profunda com a realidade, essas passagens têm o caráter de um negativo (ainda que os negativos fotográficos já sejam objetos históricos). Suas primeiras obras buscam aceder à realidade através de distintas camadas de irrealidade – obviamente estou usando metáforas para sensações provocadas em mim por estas obras, sensações difíceis de resumir. Entretanto, o que pressinto ao reler o seu último romance, Mis dos mundos, é que a relação do narrador com o real parece atravessar uma nova crise, ou um novo grau de incerteza. Há um registro psicológico nesse romance – distante e livre, certamente – que parece estar ali para pôr em dúvida a precária relação que o narrador tem não só com a realidade circundante mas também com a realidade de seu próprio ser. O mesmo narrador diz em certo momento que se condenou a novas formas de fracasso no momento em que começou a buscar em suas caminhadas conexões ou ressonâncias com seu passado. Não é esse passado, todavia – ainda quando esteja composto mais de leituras do que de experiências vitais –, o que antes mantinha os narradores de suas obras anteriores em uma relação difusa, mas contínua com o real? Sem menosprezar o marco circunstancial do romance ou o mal-estar do narrador em vésperas de mais um aniversário, parece haver nesta obra uma preocupação em levar a um extremo certa modalidade narrativa, para ver até onde resiste a estrutura ou o registro narrativo dirigidos ao que talvez possamos chamar de o insuportável peso da irrealidade. É isso o que em parte o que busca comunicar o romance? Trata-se de experimentar com uma estética ou vai mais além da eleição estética essa preocupação ou sensação de crise?

S.C. Na melhor das hipóteses, crise é a palavra adequada. Mas, ao mesmo tempo, é uma palavra tão carregada de ressonâncias que só se pode usá-la com restrições. Creio que entre a desconfiança que se põe em cena em outros romances, segundo você descreve, e a desconfiança de Mis dos mundos, há, de fato, algumas diferenças. Agora a desconfiança não aponta tanto para a dúvida sobre a capacidade do escrito para representar o que se considera realidade, quanto para a dúvida sobre o significado do que ocorre, tanto na anedota, quanto na consciência de quem escreve. Parece-me que a literatura passa por aí, é uma pergunta sobre o significado do mundo e de nossas ações. Neste sentido, é como ocorre também em Baroni: uma viagem, creio que a verdadeira história é a que se desprende com o discurso do narrador. A cena da escritura, poderíamos dizer, como se tratasse de um largo solilóquio onde se travam associações e ressonâncias acerca do vivido e do percebido. A perplexidade frente à avalanche de impactos e estímulos cotidianos é um dado do sujeito global. O sujeito global provavelmente não exista como indivíduo, mas é uma sensibilidade quase encarnada ao redor do mundo. Uma sensibilidade em que se misturam tiques, lugares comuns, saberes superficiais, canais de informações, estereótipos e pensamentos hierárquicos. Os valores do sujeito global acabam achatando qualquer indício de diferença e originalidade. A diferença e a originalidade se convertem em representações da nostalgia ou do exotismo. Creio que a literatura possa interrogar acerca desta situação, mas que sua resposta não conviria se estivesse adaptada aos formatos mais conhecidos de se organizar como literatura. Em suma, é como se a literatura somente pudesse ser escrita quando o escritor deixa de sê-lo, quando deixa de ser escritor, porque tudo o que escreve sendo escritor, está condenado a alimentar este circuito perverso de adaptação e conformismo. E, obviamente, não há solução. Para mim, uma alternativa é extremar esse vínculo entre determinação e indeterminação; refiro-me concretamente aos meus relatos. Submetê-los a uma economia arbitrária de ambos os estatutos. Creio que aí se constrói o verdadeiro espaço da ficção.

D.N. O que você disse me fez pensar em um ensaio publicado em El punto vacilante, no qual você fala sobre a diferença entre escrever à lápis e escrever no computador, no qual a idéia do original desaparece por completo porque é impossível voltar: já não há original no arquivo do computador. Seria preciso manter tantas, tantas versões do que se faz para que houvesse um original, mas é impossível fazê-lo. É isso parte do que experimenta o narrador em Mis dos mundos?

S.C. Bem, indiretamente sim. No ensaio que você menciona, refiro-me a original em dois sentidos. Por um lado, como você diz, original em termos filológicos, o original, a primeira versão; como se perfilam e organizam as palavras enquanto discurso, em uma primeira versão. Mas também me refiro ao original em termos plásticos, ao texto, à folha de papel que tem seus próprios traços e que com o correr do tempo e a fortuna ou má sorte do escritor se converte em objeto de interesse de bibliotecas ou colecionadores, ou se converte em algo que termina em caixas ou armários de parentes. Mas em qualquer caso, ambos, tanto o original como objeto filológico quanto o original como documento gráfico de escritura, estão ameaçados pela escritura no computador que, como você diz, se desvanece. No ensaio, eu me referia também a outro aspecto que tem a ver com a imediaticidade, com o tipo de transação instantânea que todo escritor estabelece com o escrito, dependendo do meio que emprega. Tive épocas de escritura à mão sobre papel, de escritura à máquina de escrever e de escritura ao computador. E para mim o computador foi como um retorno a escrever à mão.

D.N. Em outras entrevistas e ensaios, você nomeou alguns dos escritores argentinos da atualidade a quem você leu ou segue lendo com interesse. Da influência decisiva da obra de Saer, você já falou em várias ocasiões. Você também já comentou ou escreveu sobre Di Bendetto, Aira, Lamborghini, Walsh. Hoje, falarás de Pauls e de Ronsino [referência à conferência que Chejfec proferiu após a entrevista]. Você já falou bastante extensamente mas sempre em termos gerais dos escritores que te interessam e dos que te interessam menos, mas sem mencionar outros nomes. Que outros escritores hispânicos, não argentinos, te interessam? E escritores não hispânicos?

S.C. Me ocorre mencionar três autores, um pouco arbitrariamente. São escrituras um pouco insólitas. Gosto dos livros que resultam difíceis de localizar em um gênero ou em uma zona já conhecida. Mario Bellatín: é um caso muito curioso de escritura abreviada, como se cada frase fosse a legenda de um quadro ou de um comic. Junto com sua tendência sintética, há relatos muito comoventes, como “Canon perpetuo”, ou “El jardín de la señora Murakami”. Gosto de algumas coisas de José Revueltas, que é contemporâneo, apesar de não ser. Gosto dos últimos livros, os menos realistas, menos melodramáticos, nos quais se mesclam autobiografia, história, experiência pessoal, testemunho; são seus livros menos literários e os mais grandiosos, paradoxalmente, porque deixou de lado a literatura tal como a havia entendido até o momento. Gosto do venezuelano Igor Barreto, que é poeta e ensaísta. Parece-me que, dentro do que se escreve na América Latina, Barreto é quem faz um trabalho mais minucioso, mais preocupado em tentar conseguir uma chave renovada para poder representar a natureza, a paisagem natural. A paisagem natural sempre significou na América Latina um problema de representação.

D.N. Na apresentação inicial, foram mencionadas algumas complicações e opções com a pronúncia de seu sobrenome. Seu sobrenome desempenha algum papel na concepção de suas obras, especialmente naquelas que têm a ver com a memória? [Essa é uma versão de pergunta feita pelo professor Steve Marsh como parte da discussão que se seguiu à entrevista (a pergunta em si resultou inaudível na gravação).]

S.C. Saer dizia algo muito interessante e provocativo, dizia que muitas vezes sua experiência de leitor estava relacionada com o impacto que lhe produzia o sobrenome do autor, mais do que a literatura. E creio que os sobrenomes, ou os nomes em geral, em uma palavra, são uma espécie de promessa, que às vezes se converte em fraude, e às vezes não. Uma promessa não cumprida.

Creio que a instabilidade em relação ao sobrenome, de alguma maneira formou parte de minha identidade, tanto civil, subjetiva, quanto também literária. Há um romance, mais uma autobiografia na verdade, muito curto, do argentino Luis Gusman. Se chama La rueda de Virgilio. Foi publicado no começo dos anos 90, e é uma das melhores autobiografias. O livro teve uma circulação escassa. Saiu por uma editora muito pequena e não foi reeditada até agora pouco, mas é como se não tivesse sido reeditado. Ele fala precisamente disso, uma parte do livro está dedicada ao seu sobrenome. Porque seu sobrenome que se escreve com “s” – Gusman –, não com “z” e não leva acento. Então, ele fala muito de seu pai e do significado de seu sobrenome e dos obstáculos ou confusões derivados desse sobrenome. Há outro relato muito curto de Roberto Arlt acerca do sobrenome, chamado “Qué hay un nombre”, no qual Arlt se pergunta e recorda a pronúncia defeituosa, trabalhosa, tortuosa de seu sobrenome na escola. Alan Pauls tem um belo ensaio sobre esse artigo de Arlt. Então, o sobrenome é um tema importante dentro da literatura argentina, indubitavelmente pela origem imigratória de parte importante da população. E para mim sempre foi um tema interessante, porque também eu me encontrei como portador de um sobrenome meio impronunciável para companheiros e professores. Ainda hoje me deparo com distintas versões de meu sobrenome quando alguém na Espanha ou nos Estados Unidos se vê surpreendido tratando de lê-lo. A maneira mais difícil de dizê-lo em espanhol é pronunciando o “j” como um jota em espanhol. Meu pai começou o ajuste, de uma maneira intuitiva, é certo, porque era praticamente um iletrado. Decidiu pronunciá-lo combinando a pronunciação iídiche e a espanhola. E eu o terminei adotando como uma espécie de reconhecimento a meu pai. Logo também me dei conta de que formava uma parte a mais de minha origem.

Mas, voltando à pergunta. Na medida em que cada elemento vai se fazendo um tema, há algo na própria constituição do nome que se tem, e na história do nome que se tem, que vai nos derivando até certo olhar.


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.