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Boca de Lobo
de Sergio Chejfec

Tradução de Marcelo Barbão
São Paulo, Amauta, 2007

Texto anterior:
Entrevista com Sergio Chejfec

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Relatos da reflexão hesitante
por Idelber Avelar

O SOPRO republica abaixo o prólogo de Idelber Avelar para a edição brasileira de Boca de Lobo, romance de Sergio Chejfec traduzido por Marcelo Barbão e publicado pela Amauta Editorial em 2007.

O leitor brasileiro tem agora em mãos um dos momentos chave da obra do notável escritor argentino Sergio Chejfec (1956-), autor de nove romances, duas coleções de poemas e um livro de ensaios. Boca de lobo (2000) narra a relação intensa mas oblíqua, amorosa mas plagada de tropeços, cúmplice mas não isenta de idealizações, entre um narrador anônimo “que leu muitos romances” e uma operária, Delia, mulher que é a zona-limite, opaca, ante a qual ele exercita sua capacidade de compreensão e de entrega. Escrevendo sobre o romance, Martín Kohan notou que se trata de uma história que “teria correspondido, em outros tempos da literatura, a uma típica fábula do realismo social, com tom de denúncia urgente e mensagem incluída”. Afinal de contas ali estão a fábrica, o subúrbio, a alienação, a relação desumanizadora com a máquina e o olhar fascinado de um não-operário que se aproxima, mas oscila entre o amor e o alheamento. Não se procure aqui, no entanto, uma fábula edificante do engajamento social ou um retrato pitoresco da vida operária. O projeto narrativo de Chejfec, insólito e solitário, se erige sobre as ruínas desses modelos. No Brasil, em particular, as representações contemporâneas da classe trabalhadora na literatura têm se mostrado tributárias de uma previsível estética da “neo-violência”, que não poderia estar mais distante da arte sutil, quase sussurrada de Chejfec. Boca de lobo seria, assim, uma resposta – brilhante, me parece – à questão de como dar conta, literariamente, da vida operária, trabalhadora, em épocas de desmoronamento de todo realismo social.

Tal como os patrícios fundadores Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) e José Mármol (1818-1871) ou os romancistas contemporâneos Manuel Puig (1932-1990) e Juan José Saer (1937-2005), Chejfec pertence a uma longa tradição de escritores que produziram literatura inconfundivelmente argentina fora das fronteiras do país. Em 1990, ano em que se radicou na Venezuela como diretor da importante revista Nueva Sociedad, publicou seu primeiro romance, Lenta biografia. A ele se seguiram, além de Boca de lobo: Moral (1990), O ar (1992) — sobre um sujeito a quem a mulher abandona e cuja indecisão acerca de segui-la ou não se transforma em eixo do relato –, Cinco (1996), O chamado da espécie (1999), Os planetas (1999) — a incursão de Chejfec pelo romance pós-ditatorial, narrado por um escritor que abraça a profissão a partir do desaparecimento de um amigo – e Os incompletos (2004), todos escritos durante a estadia do autor em Caracas. Desde sua mudança para os Estados Unidos, em 2005, publicou Baroni: uma viagem (2007), o seu tributo à Venezuela. Além da obra de ficção, Chejfec também é autor dos poemários Três poemas e uma mercê e Galos e ossos, além do livro de ensaios O ponto vacilante. Já é referência indispensável para quem se interessa pelo rico do romance argentino contemporâneo.

“Não somos mais que um conjunto de desavenças com a realidade”, diz o narrador de Lenta biografia. Nesse hiato entre a palavra e o real, entre a memória e o fato, Chejfec vai construindo o fascínio de sua tortuosa ficção. É comum em suas narrativas que o narrador volte ao acontecimento, rasure o já dito, reescreva o afirmado. Chejfec pertence a uma linhagem da prosa ficcional argentina caracterizada por uma certa desaceleração reflexiva do relato. Não se trata de que “aconteça pouca coisa” – acontece muito em seus romances –, mas a linguagem estabelece com o acontecimento uma relação que a obriga a experimentar diferentes ângulos para descrevê-lo. A epítome dessa tradição multi-perspectivista é Juan José Saer, que burilara ao máximo o relato (e frase) que procede regressando e picotando o relato (ou frase) anterior. Mas se em Saer ainda permanece um movimento semi-circular ou espiralado de certa grandiosidade, num “eterno retorno” reiterado não só dentro do mesmo relato, mas de um livro para outro, Chejfec mantém a estratégia pensante, mas suas frases, ou pequenos núcleos narrativos, regressam ao material anterior numa coreografia de movimentos mais erráticos e descontínuos. O resultado é uma poderosa reflexão sobre a linguagem e a memória, na qual a ênfase recai sobre a opacidade, o desconcerto, o logro. Não parece haver aqui progressão temporal nas ações. A narrativa tem lugar num tempo espacializado, em que os acontecimentos coexistem como que numa multiplicidade de camadas. Em parte por isso, em parte pela voz sussurrada, meditativa do narrador, os personagens de Chejfec não suscitam catarse ou identificação de qualquer tipo em quem lê. Estamos longe do paradigma dialético da ascensão, clímax e queda.

É próprio dos protagonistas de Chejfec chegarem atrasados à cena que os constitui. Em Boca de lobo, essa defasagem produz no narrador resultados angustiantes, dado o domínio e a fascinação exercidos por Delia, a operária. Ante a realidade bruta dos fatos, ele pontua seu espanto com recordações do que leu.: “li muitos romances onde o protagonista retorna ao lugar esquecido”; “Empréstimo. Dívida. Li muitos romances que tentam resolver o sentido dessas palavras”; “Li muitos romances em que os personagens estudam os trajes dos outros para conhecer aquilo que as palavras não dizem nem os atos descobrem”; “Li muitos romances onde os cheiros servem para resgatar recordações esquecidas, demonstrando que um laço mais eficaz e verdadeiro se manifesta quando a consciência se abandona à surpresa”. “Li muitos romances onde há pessoas que tiram conclusões arbitrárias sobre os demais”. Uma infinidade de frases com esse mesmo começo se repete ritmicamente ao longo da narrativa, marcando sua respiração. Reiteradas, iluminam alguma zona do contraste entre a história do protagonista e os choques que lhe impõe a experiência com Delia.

Num amor que une uma operária e um protagonista literato como o de Chejfec, seria de se esperar que o autor recaísse em um de dois perigos opostos: a ilusória fusão romântica ou a estereotipada idealização do outro. Na primeira, o intelectual passaria pelo processo de purgação, se despojaria de sua “falsa” cultura livresca e aprenderia com a vida simples dos operários: fábula realista-socialista. A segunda intercalaria fascinação e hostilidade como forma de sublinhar o abismo da distância insuperável, ao fim da qual o outro seria um puro ou um monstro: fábula vanguardista-modernista. Chejfec escreve com notável consciência dessas duas armadilhas. O protagonista não escapa da idealização, mas não deixa de fazer agudas observações sobre a fissura que o separa de Delia. Veja-se o assombro que lhe produzem os empréstimos de roupas entre os operários, parte de uma economia da escassez onde só circula entre eles o que não tem valor de troca — roupa, ferramentas, utensílios, o próprio trabalho, mas raramente alimentos e jamais o dinheiro. Daí, nota o narrador, que seja mais simples endividar-se com agiotas, em vez de recorrer à ajuda de quem não cobraria juros. As dívidas acumuladas de um operário, F, produzem outra cena que o protagonista contempla com espanto: a entrega a F, pelo grupo inteiro, de uma soma de dinheiro à qual só alguns contribuíram – não se tratava de dividir entre todos o mérito da generosidade, mas diluir num coletivo maior o peso da desonra. Nessas observações ao mesmo tempo sagazes e distantes, o narrador de Chejfec vai construindo uma relação com o outro que é singular – embora não singular o suficiente para que ele se mostre digno desse amor.

Beatriz Sarlo, a crítica argentina que mais atenção vem dedicando à obra de Chejfec, notou com a habitual perspicácia que seus escritos impõem um giro às recentes representações do imaginário urbano. A urbe já não é marcada pela profusão de signos, mas pela ruína, decadência, esvaziamento. Publicado um ano antes do colapso pós-menemista da Argentina, Boca de lobo assume tons antecipatórios. Apesar de que praticamente não há sinais específicos que remitam a Buenos Aires ou a qualquer outra cidade argentina, o cenário pós-industrial construído pelo romance traz numerosos paralelos com os processos recentes vividos pelo país.

A expressão que dá título ao livro designa as zonas baldias, poços de penumbra, blocos de escuridão pelos quais transita o personagem; metaforicamente, também alude à zona de incomunicação e perplexidade que organiza sua relação com Delia. Tragado por essas bocas de lobo, o amor entre o leitor de romances e a operária termina como costumam terminar, na grande literatura, todos os amores. Desenredar os fios do fracasso não é a menos fascinante das tarefas propostas por este romance.


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.