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Ideologia jornalística e poder

por Hugo Albuquerque

A palavra “jornal” vem do francês journal, literalmente, “diário” – trata-se de um publicação impressa em papel, cuja periodicidade é diária. Seu embrião remonta à contribuição inestimável de Gutemberg para a humanidade: A criação de prensas tipográficas capazes de produzir material gráfico, em papel, de modo seriado em uma escala considerável. Tal advento histórico é aquilo que McLuhan entende pelo pedra fundamental da comunicação em massa, o surgimento do homem tipográfico como ele bem definiu; no entanto, a origem do jornal tal como nós o conhecemos é uma herança do iluminismo, em particular, dos panfletos políticos difundidos durante as revoluções burguesas.

A revolução gutemberguiana teve um peso gigantesco; ela resolveu a contradição fundamental da Idade Média: Se desde tempos imemoráveis, o homem civilizado carecia da circulação de ideias em maior quantidade e velocidade, no Medievo, ele se via completamente dependente dos monges copistas no que concerne à circulação de ideias. Tais monges formavam um importante grupo à serviço da Igreja, pois eram eles que, na prática, garantiam a sua hegemonia cultural – que, como sabemos desde Gramsci, trata-se do alicerce da própria hegemonia política. Dos jornais surgiram os jornalistas, o saber prático denominado jornalismo e uma ideologia correspondente – sobre a qual dissertarei mais adiante.

Dentro desse cenário de superação das amarras medievais, na qual a tecnologia de imprensa ocupava uma posição de destaque, sucedeu-se um brutal avanço econômico na Europa, em especial, depois das Grandes Navegações e a consequente exploração do continente americano pelas potências daquele continente. A tecnologia tipográfica era uma das molas daquele desenvolvimento e, ao mesmo tempo, seu tributário; esse fenômeno, inclusive, é um dos elementos centrais para o surgimento do protestantismo e do declínio da influência de Roma em grande parte da Europa Ocidental.

Durante o século das luzes, os déspotas esclarecidos tinham como viga mestra política a doutrina da não confrontação do processo processo civilizatório, mas sim da sua apropriação para garantir a manutenção do status quo - de tal maneira, as monarquias europeias, à luz do aumento da complexidade econômica de seus reinos, iam até as fontes do iluminismo e se usavam de muitos de seus conceitos. Mesmo dentro de um quadro de promoção de mudanças políticas cujo fim era a conservação da própria Ordem, evidentemente mudanças mais profundas ocorriam com a mudança da relação entre soberanos e súditos – principalmente se levarmos em conta que a pedra fundamental desse processo civilizatório era a massificação da alfabetização, em especial, no caso prussiano com Frederico II.

Tal conjuntura, que unia a existência de meios tecnológicos de difusão em massa da mensagem escrita à existência de meios sociais para a compreensão da mesma, foi um dos principais elementos da escalada da burguesia e, ao mesmo tempo, um importante arma para que ela alcançasse a hegemonia. A importância dos panfletos durante a Revolução Burguesa foi fundamental. Boa parte do poder de um Danton, por exemplo, decorria de seu jornal – assim como boa parte da reação girondina só foi possível por conta do domínio que a alta burguesia já exercia em relação tanto à imprensa escrita quanto às fábricas de papel. Napoleão também soube se usar dessa fonte, apesar dela ter se virado contra ele quando ele se tornou um problema para a mesma burguesia que o criou.

A hegemonia burguesa no século 19º assentou-se sobre a ideologia liberal e é dentro desse cenário em que a imprensa clássica teve muitos dos seus fundamentos centrais fixados; em um primeiro lugar, o nascente “jornalismo” se arroga da pretensão de neutralidade, objetividade e da concepção de ouvir “os dois lados”, partindo de antemão da existência de uma simetria prévia entre as partes – e classes – que se confrontavam. A economia capitalista industrial do século 19º necessita da difusão em massa de comunicação para conseguir concretizar o modo de organização social complexo do qual ela depende e, para tanto, ela produz os meios para exercer tal função e a própria ideologia por meio da qual se estruturariam os métodos para realizar essa mediação.

As falácias sobre as quais se assentam a imprensa liberal são a expressão comunicacional das falácias jurídicas e políticas liberais; em suma, todas elas decorrem das falácias gerais dos liberalismo e que, pela vez delas, caminham na contramão da filosofia clássica: O descobrimento da realidade deixa de ser o horizonte a ser buscado e, de repente, é como se ele já tivesse sido atingido, só nos restando agir de acordo com seus ditames: Não pense, não reflita, não sonhe, a verdade já foi encontrada e só resta agir à partir dela. Outro ponto digno de relevo é a doutrina de igualar desiguais - notadamente pré-aristotélica – que, por óbvio, favorece o mais forte ao colocar no mesmo patamar agressores e agredidos, opressores e oprimidos. A linguagem de força, isto é, neutralizante, torna-se, como na passe de mágica, neutra. Eis as bases da ideologia burguesa e é sobre ela que deverá se assentar a ideologia jornalística: Devemos apenas explicar as coisas ouvindo sempre os “dois lados” - sem considerar em que patamar econômico, social ou moral se encontrem - , de forma “neutra” e “objetiva”.

Os trabalhadores organizados da Europa do século 19º descobrem que dominar a mídia é um passo importante na luta social. Sindicatos socialistas produzem jornais e apresentam a versão dos trabalhadores, mas a ampla maioria deles caem na mesma falácia do jornalismo burguês, sendo apenas mais meios de comunicação classistas, portanto, vendem versões meramente inversas às da imprensa burguesa. Eles absorvem as prática e técnicas que constituem o arcabouço do jornalismo, questionam a natureza da “neutralidade” e da “objetividade” da imprensa burguesa, mas não rompem totalmente com o paradigma da ideologia jornalística – ou, no máximo, caem num extremo de negação da verdade factual, que é o mesmo terrível engano que, décadas mais tarde, será um dos fundamentos do desastre stalinista na União Soviética, seja na doutrina que apresenta um Leviatã pintado de vermelho como caminho para a emancipação humana ou na tentativa de justificação racional do partidarismo da mídia e do próprio modo de narrar a História.

No Brasil do século 19º, os jornais tiveram lá sua influência na independência, mas levando em conta a pequena quantidade de pessoas alfabetizadas – mesmo em meio a nossa elite -, eles não foram a arma central de tal processo. No Golpe de Estado que resultou na República, tal influência foi um pouco maior, mas eles só vieram a adquirir uma importância considerável no debate politico apenas no século 20º, quando a industrialização do país produziu a tecnologia necessária para produzir material impresso em escala assim como as estruturas educacionais que alfabetizaram uma quantidade mínima de pessoas para compreender o significado daquela espécie de mensagem. Não por coincidência, o primeiro governo da nossa história que traça uma política firme de censura e controle geral da imprensa é, justamente, aquele que, mais do que qualquer um outro, trabalhou em prol do desenvolvimento industrial e da urbanização do país – e, claro, falo aqui de Vargas.

Quando o Capitalismo brasileiro atinge o patamar de desenvolvimento suficiente, ele produz a imprensa e, ao mesmo tempo, os mecanismos de controle sobre ela – para assegurar que ele atenda a sua finalidade: A manutenção da hegemonia burguesa. A construção no Brasil do ethos do “jornalista” tem muito a ver com a alegoria liberal e, de certa maneira, com a tradição bacharelesca típica do nosso país. A relação entre Direito e Magia - que remonta às origens distantes do primeiro - aflora no nosso país por conta da organização social hierarquizada decorrente da forma como o território foi colonizado e da ideologia positivista responsável por detrás do processo de imposição da República.

Se no mundo ocidental, o advogado é esse mediador com o poder de permitir o acesso do reles mortal à sacro-santa dimensão do Estado Burguês, aqui ele ganha uma incomum proeminência por conta da nossa organização social; o mesmo vale para o jornalista que está sendo construindo pela Ordem: Ele é o agente mediador responsável por narrar a realidade factual de acordo com o prisma dominante, é ele quem abre o portal mediante o qual fatos comuns podem acessar as páginas sacras das escrituras, isto é, os jornais – e é mediante tal processo que o sistema lhes atribuirá importância.

A ditadura militar brasileira, instituída por meio do Golpe de 64, necessita estabelecer mais controle da imprensa ao mesmo tempo em que fomenta o avanço das telecomunicações – nada mais natural. Ela produz um oligopólio midiático e, dentro da mais pura lógica positivista, ordena as coisas para fazê-las progredir. As empresas jornalísticas que apoiaram a derrubada do Governo Goulart assistem ao esmagamento das suas concorrentes que se opuseram ao Golpe e tornam-se agora os auto-falantes do novo regime que visa desenvolver o capitalismo nacional a qualquer custo. Outra medida de ordenação das relações midiáticas é a depuração da própria mão-de-obra. A exigência de diploma de jornalista nos fins dos anos 60 (Por meio do Decreto-Lei 972/69) aconteceu não por obra da mobilização sindical, como alguma mente ingênua pode pensar: O Regime buscava impedir que os filhos da classe trabalhadora ascendessem nas redações e assim o Oligopólio Midiático teria sua mão-de-obra previamente filtrada – jornalistas formados na rua e sem educação formal estavam expulsos das redações. Um processo deliberado de elitização da mão-de-obra semelhante ao advento que varreu definitivamente a figura do rábula do nosso mundo judicial foi posto em prática. Essas são as linhas mestras que determinaram os rumos da mídia brasileira dos anos 60 até o término do século 20º. De um sistema que se restringia quase que exclusivamente à zona urbana com o Rádio e os jornais e terminou com um sistema de televisionamento e radiodifusão massificado (além de uma potente mídia escrita) no término do século.

O outro ponto de inflexão na relação de mídia e poder que irá alterar substancialmente tais relações, seja no Brasil ou no Mundo, é o advento da Internet; criada com fins militares, a Internet é uma decorrência óbvia do avanço da informática e ao mesmo tempo um estandarte do utilitarismo americano – caracterizado pela capacidade incomum em reutilizar suas criações bélicas na economia comum. A Internet se estrutura como um sistema informacional em rede de alcance global e, na prática, representa o ponto de convergência de todas as mídias já existentes em uma só coisa, capaz de transmitir dados em uma velocidade – e para uma distância – ímpar.

A possibilidade da criação de uma miríade de espaços novos dentro dessa rede mundial somada ao desenvolvimento de mecanismos de buscas como o Google – que, no fim das contas, garantem a unidade da web, funcionando como o fecho necessário para garantir a coerência da rede -, possibilitam a criação de uma universo libertário – no sentido americano do termo -, passível de ser anarquizado e, assim, assistimos a uma profunda alteração nas relações econômicas, sociais, políticas e pessoais devido a nova espécie de interação mediada, na verdade, a maior revolução contemporânea e a verdadeira – e única - quebra do paradigma comunicacional de massa estabelecido no período posterior às revoluções burguesas. A Internet funciona de forma antitética aos meios de comunicação em massa tradicionais: ela não é parte de um centro difusor que chega a milhões de pessoas ao mesmo tempo – uma via de mão-única, portanto –, ao contrário, ela institui uma lógica dialogal, na qual os emissores são, ao mesmo tempo, receptores, todos integrados em uma série de redes sociais integradas entre si. O indivíduo torna-se elemento ativo na relação midiática.

O caráter da Internet não é anárquico. Ele não pressupõe o domínio coletivo, mas sim uma lógica privada extrema e horizontal – o que remete aos libertarians americanos e não aos anarquistas. Por outro lado, ela é mantida pela entidade denominada ICAN, a guardiã da arquitetura da Internet, curiosamente ligada ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos da América. Ademais, países como China e Irã, controlam a rede de um modo menos sutil que a superpotência americana, ainda que no fundo, o controle-geral da rede esteja em mãos estadunidenses. Se formalmente ela está sim sob controle, certas idiossincrasias suas são, na verdade, flancos que, como já dito, abrem espaço para uma potencial anarquização (como a obra dos hackers nos prova) – em suma, se formalmente a disputa da Internet é, no máximo, política, entre europeus propondo um gerenciamento global da rede (por meio da ONU) em detrimento do interesse americano, materialmente, a Internet ainda está em efetivamente em disputa.

Dentre os inúmeros pólos internéticos, podemos destacar as redes sociais. Por meio delas, os usuários podem manter contas individuais, difundir notícias, trocar informações e articular ações no mundo físico. A lógica que embasa as redes sociais fura a própria hegemonia dos grandes portais que, mesmo sendo importantes centros difusores dentro da Rede, são passíveis de contestação na medida em que os usuários detém o poder de produzir, questionar e acrescentar dados à informação. A grande narrativa que poderia ser expressa por meio dos ditames jornalísticos – e onde a ficção, em um sentido espinosano, ocupava grande espaço – pode ser facilmente desconstruível e isso se liga ao próprio conceito de virtualidade: O nosso ser está elevado à potência, estamos deslocados, somos nós mesmos que estamos na rede atuando; aquela velha mediação produzida pelo mago-jornalista, guardião e conhecedor do segredo sagrado da mística do acesso informacional é feita automaticamente nesse novo meio[1].

Na edição 81 da revista Fórum, Dezembro, Henrique Antoun disserta sobre tal confronto em um artigo com o delicioso título "Guerra da Informação ou Guerra em Rede?" e toca na questão da condição dos usuários de redes sociais, de forma cirúrgica, ao fazer a seguinte citação: “Os usuários se transformam em sócios das empresas através de sua cooperação interessada, a colaboração e a livre expressão uniriam empresários e usuários nesse poderoso ambiente de negócios integrados". Em suma, o mesmo Capitalismo que criou e potencializou os meios de comunicação em massa clássicos é o mesmo que os levou à exaustão e, agora, nos pegamos em uma nova etapa, na qual o Capitalismo pós-industrial e Global produziu uma nova forma de mídia de massa que é contraditória aos meios clássicos – mesmo que as empresas da velha mídia estejam organizadas em poderosos oligopólios e, mais do que isso, mesmo com a entrada delas nos negócios da Internet, percebe-se que o lucro que obtinham com os velhos negócios raramente se reproduz na Rede, pois a rentabilidade estava intimamente ligada à velha forma de mediação informacional. O usuário de rede social não é necessariamente um pirata, mas um “sócio” dentro de uma nova lógica empresarial cuja finalidade é garantir uma nova forma de organização social, necessária para um Capitalismo que se desdobra para além do Estado-nação.

No Brasil, a instituição do jornalista é desconstruída. Se o marco histórico da sua formação é jurídico – a obrigatoriedade do diploma -, o marco histórico de sua decadência ocorre da mesma forma, como não poderia ser diferente em um país de tradição cartorial como o nosso: Tal marco é o fim da obrigatoriedade do diploma, fruto de uma decisão do Supremo Tribunal Federal de Junho do ano passado (2009), quando, julgou um recurso extraordinário interposto pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo (Sertesp) e pelo Ministério Público Federal. Isso foi um efeito claro do impacto econômico que a Internet significa para a velha mídia: A quebra de paradigma que a rede mundial de computadores estabeleceu em relação à comunicação alterara consideravelmente a conjuntura política sobre a qual se assentava a ordem positivada pelo Decreto-Lei da Ditadura; se antes fazia sentido a depuração da mão-de-obra, hoje, a concorrência da rede joga uma pressão muito forte sobre as empresas do Oligopólio da mídia tradicional, de tal forma que a única saída possível foi ela lutar pelo fim da obrigatoriedade do diploma junto ao aparato judicial do Estado como forma de abaixar o custo econômico das redações, aumentando assim a oferta de mão-de-obra e também diminuindo o poder do próprio sindicato dos jornalistas. O decreto dos militares e a decisão do STF presidido por Gilmar Mendes, ao contrário do que o debate travado em meio intelectualidade acerca do fato levava a crer, foram perfeitamente coerentes entre si: Ambos foram uma expressão jurídica das necessidades do sistema econômico.

Por outro lado, a mídia tradicional brasileira se arroga de uma nova função que é a representação direta de interesses políticos das famílias controladoras da empresa – ocorre aí um paradoxo, se por um lado a Internet tira boa parte do poder do oligopólio midiático, por outro, vivemos numa época em que a fronteira entre a informação e o valor econômica se estreita; nunca antes na história, a informação se aproximou de uma maneira tão direta do poder e nunca antes a mídia tradicional esteve tão ameaçada. Isso provoca uma mudança considerável na função do jornalista: Como teses vindo prontas “de cima” e como seu status jurídico-social diminuído, os jornalistas que trabalham nos grandes meios de comunicação nacionais se tornaram meros redatores que devem atar narrativamente as teses pré-elaboradas pelas direções em relação aos grandes temas da política e da economia. – baseados, naturalmente, nas concepções que elas nutrem em relação à política e aos interesses que eles têm em relação à economia.

De um lado, temos uma mídia tradicional, regionalizada ou, no máximo, nacionalizada, centrado nas questões tangentes ao Estado-nação, de outro, uma rede de escala global tributária e agente de uma economia global – tal dicotomia é a expressão, no âmbito da comunicação social, da dicotomia-mór do século que se inicia. A figura do jornalista se esvazia em todas as partes e no Brasil, ela se esvazia por completo. A ideologia jornalística, que se manteve fiel aos ideais liberais clássicos, bem mais do que outros ramos do saber humano – como as Ciências Econômicas e Políticas que se desvencilharam dessa influência já no século 19º- e talvez por essa vinculação ser sua própria natureza, entra em grave crise quando a narrativa verdadeira topa com a narrativa em construção expressa pelos seus próprios partícipes. As vísceras da questão social vêm à tona quando a mediação que distorce a contradição é exposta e as vítimas ganham voz própria. Uma série de questões decorrem desse processo e, se ainda não sabemos se o futuro será melhor, por outro resta a certeza de que ele será mais complexo.

[1] O acesso é feito automaticamente e, por meio desse processo, ele desfaz a ideologia que se assenta sobre a mediação. A realização de um significa a desconstrução da outra.


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.