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The Enemy of All
Piracy and the Law of Nations
de Daniel Heller-Roazen
Nova Iorque, Zone Books, 2009


Piratas

por Alexandre Nodari

“Unlike the old, armed, and public conflicts of the states, the modern confrontation against the enemy of all must each time, in each place, begin anew. Infinitely intense, preparatory and provisional, it admits of no regions such as the high seas or the air, which would constitute stable exceptions to its rule; planetary in scope, it refuses to concede that there are elements of nature that lie beyond the line of the law of nations. A perpetual war in the name of a peace that cannot be, it is familiar only with mobile zones of transitory violence, their borders incessantly drawn and redrawn across the ‘spherical surface of the earth’”.

A compreensão do que está implicado na palavra pirata é uma tarefa urgente e necessária não só pelo seu uso cada vez mais indiscriminado para se referir a quem compartilha dados, informações e arquivos protegidos por direitos autorais, mas também porque ajuda a elucidar o estatuto “jurídico” dos chamados “combatentes ilegais”, excluídos tanto do direito da guerra (e suas inúmeras convenções), quanto do direito penal. É o que demonstra o mais recente livro de Daniel Heller-Roazen. Autor também de Echolalias (que deve ganhar edição brasileira em breve) e de The Inner Touch, uma arqueologia da sensação, Heller-Roazen realiza em The Enemy of All - Piracy and the Law of Nations uma genealogia do conceito de pirata no direito international. O título é uma menção a Cícero que, em De Officiis, definiu o pirata como o inimigo comum de todos (communis hostis omnium), definição que chegaria no moderno direito internacional levemente alterada pelo pensamento medieval: o inimigo da espécie humana (hostis generis humani). Mesmo com o relativo declínio da pirataria tal como estamos acostumados a concebê-la (relativo na medida em que persiste: basta lembrar a recente atenção internacional despertada pela pirataria praticada na costa da Somália), a dupla exclusão (do direito nacional e internacional) que caracteriza o pirata continua na ordem do dia. É o que fica evidente em um dos exemplos trazidos pelo autor: a caracterização dos detidos pelos EUA na Base de Guantánamo após o 11 de setembro como “illegal enemy combatentes” não constitui uma novidade do direito internacional - e disso estavam cientes mesmo integrantes do governo Bush. De fato, coube a um deles explicitar esta ligação inesperada que Heller-Roazen investiga: “Por que é tão difícil para as pessoas entenderem que há uma categoria não coberta pelo sistema legal?”, perguntava John Choon Yoo: “O que são os piratas?”
A genealogia feita por Heller-Roazen o permite construir um paradigma da pirataria, que pode, assim, ser identificada na presença de quatro traços característicos:

1) a pirataria implica uma região excetuada da jurisdição originária - por exemplo, o alto mar, ou o espaço aéreo internacional;

2) ela envolve um agente que demonstra um antagonismo que não é em relação a um indivíduo ou agrupamento político específico: não possui um alvo determinável - daí a “universalidade” de sua ameaça;

3) como conseqüência, provoca a confusão entre categorias políticas e criminais, entre polícia e política;

4) por fim, transforma o conceito de guerra: o pirata, não sendo um inimigo de guerra no sentido usual, nem um criminoso, pode ser combatido sem limitação legal.

De acordo com este paradigma, não só os ladrões dos sete mares, mas também os seqüestradores de aviões, os chamados terroristas, e mesmo guerrilheiros são verdadeiros “piratas”. É importante ressaltar, porém, que o pirata, assim entendido, não está simplesmente fora do direito internacional e nacional. A sua exclusão é o que permite dar forma a ambos (e aqui, o paralelo com o “bando soberano” identificado por Giorgio Agamben, fica evidente). Assim, por exemplo, a gestação do moderno conceito jurídico de “humanidade” está relacionada à tipificação dos crimes contra ela: ao inventar a “humanidade”, o pensamento moderno inventou também o “inimigo da humanidade”, reelaborando, uma última vez, a definição de Cícero. Nesse sentido, a paz perpétua de Kant parece se confundir com a guerra perpétua: para garantir a humanidade, é preciso enfrentar seus inimigos - os antigos piratas - em um combate que não conhece limites.

Apesar de Heller-Roazen afirmar explicitamente que seu livro não aborda o uso do conceito de pirataria em questões relativas à propriedade intenelctual, o paradigma proposto pelo autor mostra-se revelador para entender as conseqüências de tal uso. Aquele que compartilha arquivos protegidos por direitos autorais na rede mundial de computadores opera em um “espaço” excepcional, um espaço virtual, a internet, e não afronta somente os donos dos direitos de tal ou qual música, filme, livro, programa: afronta a própria idéia de propriedade - e daí o apelo das corporações de mídia a um esforço internacional e conjunto contra a “nova” pirataria. Para combater o pirata virtual, as leis ordinárias se revelam insuficientes. Contra um inimigo excepcional, são necessárias medidas excepcionais. Nesse sentido, a lei Hadopi, recentemente aprovada na França, pela qual um juiz pode cancelar o acesso à internet de um pirata virtual, parece ser apenas o começo. Todavia, aqui o recurso à liberdade de expressão na defesa do partilhamento de dados e informações só tem sentido tático. Como afirmava Foucault, “As Luzes que descobriram as liberdades inventaram também as displinas”. O dispositivo jurídico que garante a liberdade de expressão é o mesmo que vincula toda expressão a um autor, que torna ela própria de alguém. Para um bom exemplo, basta recorrer a Constituição brasileira: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Vedar o anonimato é vedar o coletivo, o comum, aquilo que pode ser apropriado por qualquer um sem que constitua uma propriedade. Para inventar a liberdade de expressão como direito, a modernidade precisou constituir (e controlar) um fora. A Internacional Pirata, que se avizinha como a única estratégia política contemporânea revolucionária, não pode prescindir do anonimato.

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.