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Luiz Costa Lima
Uma obra em questão

organizado por Dau Bastos

Rio de Janeiro: Garamond, 2010


Repensando a trajetória de Oswald
por Luiz Costa Lima


Nota:
Este texto de Luiz Costa Lima sobre Oswald de Andrade foi escrito em fins de 2005, mas permaneceu inédito até sua publicação, há poucas semanas, no livro Luiz Costa Lima. Uma obra em questão, organizado por Dau Bastos para a editora Garamond. Vale lembrar que Costa Lima já se detivera sobre a obra de Oswald em dois ensaios de Pensando nos trópicos (Dispersa demanda II), “Antropofagia e controle do imaginário” (1989) e “Oswald, poeta” (1968, reelaborado em 1990). Além disso, conforme o autor observa na “Introdução” de seu grande estudo sobre a poesia brasileira moderna, Lira e antilira (Mário, Drummond, Cabral), a primeira versão daquele texto incluía um capítulo específico sobre Oswald de Andrade, eliminado, porém, da versão publicada em 1968 (em nota à 2ª edição revista, de 1995, Costa Lima informa que este capítulo, como outro dedicado a Murilo Mendes, “foram depois perdidos”). [Eduardo Sterzi]

 

Primeiro tempo

O “Manifesto antropófago” aparece em 1928, no primeiro número da efêmera Revista de Antropofagia (1928-1929), órgão da corrente mais agressiva do modernismo brasileiro, lançado em 1922. A Revista de Antropofagia era o lado vanguardista de um movimento que se caracterizava por sua mistura de direções ideológicas. Enquanto vanguardista, distinguia-se tanto do chamado verdeamarelismo, de que derivaria o fascismo nacional, quanto do espiritualismo católico, de cunho bastante conservador.

Antes de virmos ao próprio “Manifesto”, vejamos sua rápida contextualização.

Lembrá-lo lançado em 1928 é recordar que antecede de um ano o crash da Bolsa de New York e, em dois anos, a adesão de Oswald ao Partido Comunista, quando então corta a aliança com o dinheiro de sua família. De 1930 a 1945, quando se afasta da linha do Partido, sua produção literária terá um caráter hostil ao do “Manifesto”. A propósito de sua fase engajada, vale evocar o que William Empson escrevia sobre a “literatura proletária”:

Pode ser que para produzir uma arte de qualidade o artista deva estar de algum modo em contato com o trabalhador; pode ser que é isso que esteja errado nas artes do Ocidente; pode ser que a Rússia esteja a caminho de produzir uma arte muito boa, com todo o vigor de uma sociedade saudável e dotada de um organismo unificado, mas estou certo que não será uma pura arte proletária e penso que se estragará a si mesma se procurar sê-lo. (“Proletarian literature”. In: Some versions of pastoral, 1935)

A produção comunista de Oswald se estragou a si mesma. E o que é pior, ao retomar seu caráter anterior, perdeu anos em força de amadurecimento. Mas, antes mesmo de encararmos o próprio “Manifesto”, ressaltemos o que testemunhavam a proximidade do desastre econômico de 1929 e a opção comunista de 1930. O fim da década de 1920 apresentara um momento decisivo na história do Ocidente e do Brasil. Como assinalava em 1975 um importante economista, Francisco de Oliveira, pouca ou nenhuma havia sido a mudança que o país conhecera entre a época colonial, o período do Império (1822-1889) e o da chamada Primeira República (1889-1930): o país surgira inserido “no bojo da expansão do capitalismo ocidental”. Nessa condição, se especializara em sua declarada “vocação agrícola”, que atingira o auge com a exportação do café, entre 1910 e 1925. A passagem da Monarquia para a República se limitara, do ponto de vista econômico, ao papel central que, na República, virá a ter, nos termos de Francisco de Oliveira, a “intermediação comercial e financeira da agro-exportação”; intermediação “quase totalmente externa”, isto é, realizada por instituições e capital estrangeiros. Daí, como bem escreve o autor, “a reiteração da ‘vocação agro-exportadora’ do país e as formas pelas quais se financiava essa ‘vocação’ chegaram ao ponto de converter a libra esterlina, então a moeda internacional por excelência, quase em moeda interna”.

Meu respaldo nesses dados de história econômica visa apenas evidenciar o clima de dilema e impasse sob o qual surgiu o “Manifesto antropófago”. Ao jovem intelectual brasileiro (ou europeu) do fim da década de 1920 o mundo se mostrava à beira do abismo. A diversidade de correntes que o modernismo abrigava era a consequência desse sentimento. A direção assumida por Oswald se distinguia por preferir o lado do abismo que não ameaçava repetir a história já conhecida. Mas de que instrumentos intelectuais Oswald dispunha? Qual a disposição que daria a seu “Manifesto”? Como se distinguia da reflexão europeia realizada proximamente? A última pergunta nos levará a tratar do Collège de Sociologie, iniciativa de Georges Bataille, Roger Caillois e Michel Leiris, que duraria entre novembro de 1937 e julho de 1939. Antes ainda verifiquemos como o “Manifesto” se dispunha. Em vez de composto por um texto compacto, que exigisse disciplina reflexiva, mediante ou um desenvolvimento cerrado ou a discussão de posições contrapostas, era ele formado por cinquenta fragmentos, quase todos extremamente curtos, escritos como frases de humor. Tratava-se, contudo, de um tom witzig singular: menos agudo que impregnado de espírito cômico e, o que é mais surpreendente, movido por um otimismo contagiante. Ora, considerando-se o clima de crise do Ocidente, há de se indagar: otimismo com quê? A resposta não deixa de ser curiosa: otimismo com que os séculos de colonização não teriam destruído a alegria e o sentimento positivo de vida que os europeus encontraram nos trópicos. De onde adviria esse sentimento positivo senão das populações nativas, em breve dizimadas, escravizadas ou, quando nada, obrigadas a migrar para terras distantes? O “Manifesto”, entretanto, parte do pressuposto que esse espírito autóctone teria a possibilidade de ser reanimado pelo intenso desenvolvimento tecnológico do mundo. A técnica como que forneceria de novo um corpo de que se apossaria o espírito errante das populações originárias. Daí o verdadeiro lema do “Manifesto”, “Tupy or not tupy, that is the question”, a miscigenação da frase shakespeariana com a designação genérica das tribos nativas ofereça o mote a ser desdobrado em fragmentos como

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. (...)

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista.

A idade de ouro. (...)

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.

Dos fragmentos escolhidos só o último tem alguma relação com os postulados do Collège de Sociologie. Em ambos os casos, a lógica, enquanto instrumento da razão, é a ferramenta do mal-estar. Mesmo essa equivalência, contudo, emergia de ambientes não superponíveis. Ao passo que no Brasil o “Manifesto” tomava posição contra o autoritarismo rotineiro e improdutivo da Primeira República, a experiência do Collège resultava da insatisfação com a democracia burguesa e com a emergência do fascismo. Daí a diferença de disposição nos textos do “Manifesto” e dos que constituíram o acervo do Collège. Em relação ao primeiro, acentue-se que sua agressividade canibalística é temperada por uma dissipação bem-humorada e otimista de energias. Já nos textos do Collège aquela alegre beligerância se transforma em algo bem diverso. Esses textos, sobretudo os assinados por Bataille, secretam outro vitalismo. Ele é do tipo agônico e paroxístico, como na passagem de “L’Apprenti sorcier”, de 1938, em que se denuncia o caráter da opinião nas democracias europeias: “Esta multidão exige com efeito que uma vida segura só dependa do cálculo e da decisão apropriadas” (Bataille). E antepunha ao conformismo dominante um vitalismo alimentado pelo risco da paixão e da morte:

Mas esta vida “que se mede somente pela morte” escapa àqueles que perdem o gosto de incendiar-se, como fazem os amantes e os jogadores, pelas “chamas da esperança e do pavor”. O destino humano quer o que o acaso propõe; o que a razão substitui à rica vegetação dos acasos não é mais uma aventura a viver senão que a solução vazia e correta das dificuldades da existência.

Tal ênfase no risco e na morte é bem dissonante da agressividade irreverente do “Manifesto”. E essa diferença é acentuada pelas funções distintas que Oswald e Bataille conferem ao mito. Em Bataille, o abismo entre sua proposta e a vida social presente resulta da dissipação de um mito vivo. A convocação para e pelo mito aparece-lhe como a solução contra o amorfismo e a insensibilidade coletivos que corroíam a democracia burguesa. Em Oswald, parecemos estar em outro planeta: o mito é uma ficção que pretende assinalar que a colonização de séculos, apenas iniciada pelos portugueses, não domara uma energia primitiva. Em suma, pode-se pensar que, enquanto a ênfase de Bataille na aceitação mítica da paixão e da morte proclamava seu próprio Angelus novus, em Oswald o canibalismo jovial e a função pragmática do mito encaminhavam para o cubismo construtivo de seus romances experimentais, o João Miramar (1924) e o Serafim Ponte Grande (1933). A diferença não era só de conteúdos como de trajetos: Bataille tinha um projeto sócio-filosófico, Oswald, o de uma prosa experimental.

Embora assim de extensões bastante desiguais, em ambos era o racionalismo ocidental o alvo da crítica. Depois da Segunda Grande Guerra, na Dialektik der Aufklärung (1944) de Adorno e Horkheimer, essa crítica viria a ser radicalmente fundamentada. Para quem conheça o livro, será fácil compreender por que, a partir de parâmetros tão diversos, o francês e o brasileiro ressaltavam a necessidade de estabelecer-se uma descontinuidade com a tradição. Aqui, no entanto, interrompemos a comparação. É evidente que as expectativas europeias, na década de 1930, só longinquamente se relacionavam com as latino-americanas. Interessa-nos, por isso, nos concentrarmos na jovialidade otimista do “Manifesto”. Ao expô-la, dizíamos que, em Oswald, o mito era uma ficção que se pretendia crítica. Cabe então perguntar: em que medida a pretensão crítica era procedente? De imediato, recordemos que a imagem da América como visão de uma terra paradisíaca se afirmara como um topos desde o diário da primeira viagem de Colombo, que declarava em 16 de outubro de 1492:

Ella es isla muy verde y llana e fertilíssima, y no pongo duda que todo el año siembran panizo y cogen, y así todas otras cosas. Y vide muchos árboles muy diformes de los nuestros, d’ellos muchos que tenían los ramos de muchas maneras y todo en un pie, y un ramito es de una manera y otro de otra; y tan diforme, que es la mayor maravilla del mundo cuánta es la diversidad de la una manera a la otra. (...) Crean Vuestras Altezas que es esta tierra la mejor y temperada y llana que aya en el mundo.

O caráter paradisíaco do continente recém-descoberto se incorporou aos primeiros topoi dos que o descreviam. Oswald teria sido tão ingênuo a ponto de repetir o clichê colombino? Não, a conclusão seria falsa. Entre a visão paradisíaca do descobridor e sua reutilização, durante a crise da década de 1920, se desenvolvera, sobretudo a partir do século XIX, a afirmação da antropologia biológica, de cunho evolucionista: havendo sido colonizada pelo trabalho de índios e negros, a América se misturara com o sangue e a descendência de raças inferiores e seu futuro era nulo. Oswald, que nunca fora um pensador, tinha por arma contra o estigma as tiradas humorísticas: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt”. Seus fragmentos só tinham eficácia se seu tom cômico fosse convincente. Elas estavam longe de apresentar uma opção político-filosófica. Em seu horizonte temporal imediato não apareciam senão frases espirituosas de um clown. O próprio Oswald as abandonaria ao filiar-se ao Partido Comunista.

 

Segundo tempo

Se compararmos as frases cômico-libertárias do “Manifesto” com a história efetiva do país entre 1930, quando a revolução de Vargas encerra a República Velha, e 1964, quando um golpe militar acaba com uma sociedade fragilmente democrática, compreenderemos por que Oswald então se havia tornado um nome ignorado. Compreenderemos também por que as obras completas de Oswald de Andrade começam a ser reeditadas em 1970. Sucede que seus romances experimentais, o “Manifesto antropófago”, uma de suas peças, O rei da vela, passavam a circular a partir de uma clara motivação política: eram atos contra a ditadura instalada em 1964. Não eram os seus romances engajados os favoritos dos leitores, mas aquela parte de sua obra pela qual ele havia se considerado a si mesmo um “palhaço da burguesia”. Oswald se punha agora em contato com o público que o ignorara em vida e nas décadas próximas à sua morte. Mas cabe indagar: quem era seu público? Que, em sua obra, tal público encontrava? A resposta há de ser dupla. Eram historiadores do modernismo, como Mário da Silva Brito, críticos celebrados, como Antonio Candido, pensadores, como Benedito Nunes, e poetas-ensaístas, como Haroldo de Campos, que, assinando os prefácios de suas diversas obras, ao mesmo tempo manifestavam seu débito ao autor e assinalavam o repúdio de cada um à arbitrariedade da ditadura. Eram, por outro lado, sobretudo jovens, que, sem a erudição dos mestres, aprendiam, com a irreverência de Oswald, lições de vitalidade e cidadania. Mas, precisamente, que extraíam do “Manifesto antropófago”? Quanto ao primeiro grupo, o prefácio que, em 1972, assina Benedito Nunes é bastante sintomático. “Nossos ‘antropófagos’ viram, a caminho da Utopia, a política em função da distribuição dos bens sociais; e integraram o Poder, já desvestido de autoritarismo, à sociedade”. A utopia, continua Benedito Nunes, abarcara mesmo sua fase comunista: “Seu socialismo jamais deixou de ser, fundamentalmente, o da rebeldia do indivíduo contra o Estado, mais interessado numa sociedade nova, cuja vida passava pela morte da organização estatal, do que no fortalecimento de uma ditadura do proletariado”. E quanto aos jovens? Como convivia com muitos deles, posso dar meu testemunho. Oswald fazia com que confundíssemos a cessação do pesadelo com o início de um outro tempo, em que deixaríamos de estar na contramão da história. A criação do mito de uma disposição nativa que teria tornado ociosa toda catequese tinha um efeito apenas compensatório: nela não se acreditava, mas servia para que se cresse que a arrogância dos militares logo estaria dissipada.

 

Terceiro tempo

Rapidamente, nos perguntemos: e agora, qual o intercâmbio com a obra de Oswald de Andrade? A resposta não é animadora. Seus livros retornaram ao esquecimento. Seu experimentalismo ficou reservado a uns poucos. O ensaio A marcha das utopias (1966), que deveria representar o estágio maduro de um pensamento renovador, esbarraria contra a fisionomia do mundo contemporâneo. Passamos a ver com clareza que a desconfiança de Oswald contra a razão a confundia com uma espécie sua, a “razão instrumental”. E essa não favorece os povos que se mantiveram em atraso. Ao contrário, já agora sem distinguir, nas correntes políticas, as de direita e as de esquerda, a razão instrumental serve-se de todas. A seu império corresponde o título de um dos livros de Odo Marquard: Abschied vom Prinzipiellen [Adeus aos princípios]. O termo “cultura” ou se torna uma palavra ignorada ou é sinônimo de folclore, quando então se converte em uma sucursal da “indústria da cultura”. Ao passo que, nos países de instituições político-econômicas estáveis, os tropeços do século XXI não impedem a sobrevivência de ilhas por onde circulam as pesquisas sem finalidade imediatamente instrumental, no Brasil e em seus vizinhos, tudo que não responde à razão instrumental é encarado como perda de tempo ou atividade inútil. Oswald, então, é lembrado nos raros momentos de comemoração. Se chegarmos perto de sua sombra, veremos que seu cemitério hoje abriga muitas outras tumbas. Os ali enterrados não terão humor, não sentirão leveza e desconhecerão o otimismo. Mas, com ele, terão em comum saberem que as soluções econômicas não são suficientes para as carências de uma sociedade que se queira humana. Diante da insistência monocorde em superávit primário e aumento das exportações, ao passo que as universidades e instituições de pesquisa sobrevivem em situação de miséria e os poucos centros de intercâmbio com outros países fecham as portas, o tom humorístico de Oswald já não provoca nosso riso; transformou-se em tom macabro. No cemitério que é o seu, não estão apenas os mortos. Muitos deles falam, escrevem e, o que é pior, comandam.

O sumário e as páginas iniciais de Luiz Costa Lima. Uma obra em questão, no qual o texto acima foi publicado, podem ser lidos em http://www.garamond.com.br/arquivo/411.pdf

Próximo texto:
"Misturar desejo com história"

por Flávia Cera

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