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A vida sensível
de Emanuele Coccia

Tradução de Diego Cervelin

Desterro, Cultura e Barbárie
(Coleção PARRHESIA), 2010

Notas pessoais sobre A vida sensível de Emanuele Coccia
por Tadashi Yanai

1. A vida sensível é um manifesto filosófico de grande densidade, capaz de transformar profundamente nossa compreensão do vivente e do homem. Mais especificamente, é também uma obra muito valiosa para a antropologia sócio-cultural de hoje, na qual, há muito, tanto “o social” quanto “o cultural” deixaram de ser algo evidente, e que precisa terminar de realizar, de algum modo criativo, uma radical “troca de pele”. A “imagem”, tal como é definida no livro de Coccia, poderia ser um dos conceitos-catalizadores essenciais para esta transformação. De fato, raramente um filósofo profundamente enraizado na tradição filosófica européia, como parece ser o filósofo italiano, foi capaz de propor uma antropologia filosófica – a “antropologia do sensível” – completamente livre da concepção ocidental do homem.[1] Penso que se algum antropólogo se sentir desconfortável com a “antropologia do sensível” exposta no livro, isso não será por algum eurocentrismo; antes, eu me atreveria a suspeitar do antropocentrismo do antropólogo-leitor, do qual, justamente, este livro pode ajudá-lo a se livrar. E se conseguimos ir unindo deste modo o projeto filosófico de Coccia com a prática antropológica, certamente não será necessário distinguir a antropologia filosófica e a antropologia sociocultural. 

2. Não sei até que ponto as idéias de Coccia são “inéditas” (mas isto pouco me importa). Seja como for, ao ler distintas partes do livro, não pude deixar de lembrar outros grandes projetos do passado, distantes e recentes: a semiótica de Peirce, Matière et mémoire de Bergson, a teoria da imitação de Tarde ou a biologia de Uexküll; a monadologia de Leibniz ou a ética de Spinoza; e o pensamento de Deleuze, que se torna indiscernível, respectivamente, com as idéias dos autores aqui mencionados. Mas, pensando bem, talvez um dos grandes méritos do livro de Coccia seja precisamente a ausência de referências a estes outros projetos. Se não fosse desse modo, o livro demandaria muito mais páginas e, dessa maneira, teria perdido sua concisão, elemento essencial que nos permite ver, com clareza, que há aqui um horizonte novo (“novo” não em sentido relativo, mas sim absoluto). E, neste horizonte novo, imagino terrenos extremamente férteis para desdobrar novos pensamentos antropológicos, entre a antropologia e a filosofia, entre a antropologia e a biologia, entre a teoria sociocultural e o trabalho de campo, entre a linguagem e a imagem não verbal...

3. De todo o livro, talvez a única coisa que tenha me chocado um pouco é a caracterização do sensível como o terceiro espaço – esse espaço do sensível que não é nem o dos objetos nem o dos sujeitos. Se compreendi bem, a característica fundamental da imagem como superfície – multiplicável – do aparecer das coisas é sua conectividade: é algo entre o espaço objetivo e o subjetivo, que não pode existe senão como entre. O “espaço” do sensível, portanto, entender-se-ia, por assim dizer, menos como substantivo do que como preposição.[2] Noto isso não para criticar um termo usado pelo filósofo, e sim para ver onde esta reflexão nos leva. Por exemplo, deste ponto de vista, em que consistiria o ato de “comer”? É um tipo de mescla de corpos que, certamente, não pode se confundir com um fenômeno natural como a dissolução de açúcar em água. No ato de comer, dado que se trata de um ato vital, é preciso que intervenha o espaço do sensível, esse espaço do entre, espaço inexistente nos fenômenos puramente físico-químicos: o célebre carrapato de Uexküll deixa claro que todo ser vivo necessita essencialmente da superfície-imagem para se alimentar.[3] Mas, também é certo que o tema se torna menos evidente se prosseguimos na reflexão: o que acontece no intracorpo do carrapato quando ele chupa o sangue de sua vítima? Provavelmente haverá sensações infinitesimais no interior do corpo do carrapato, e, dentro dessas sensações, outras sensações menores, etc., e, desse modo, poder-se-á seguir supondo esse espaço entre. E, ao mesmo tempo, também resta claro que, ao final, o processo acabará tornando-se indiscernível com os processos físico-químicos. Do carrapato ao homem, creio que todos vivemos tanto o primeiro tipo de mescla de corpos (o superficial), quanto o segundo tipo de mescla de corpos, invisível e muda (o material), sem que os dois sejam separáveis. E no intracorpo não se dão apenas os fenômenos físico-químicos, mas também os fisioquímicos, neuroquímicos, psicoquímicos, os quais seriam entendidos, em outro registro de teorização, como forças, afecções e desejos. E estas forças, afecções e desejos, articulados inteiramente de uma maneira ou de outra, estarão ao mesmo tempo em comunicação permanente com o mundo ambiente. “O mais profundo é a pele”: a pele é imanente ao profundo, a esse profundo que também se abre para fora, para o que chamamos, grosso modo, “o sociocultural”. E aí é onde, do meu ponto de vista, a teoria transcendental do sensível pode manter trânsitos frutíferos com os estudos empíricos de etnologia, antropologia e sociologia, entre outros.

4. Nesse sentido, para citar só um caso, a obra de Gabriel Tarde é particularmente interessante. Tarde definia a imitação como “celui d'une action à distance d'un esprit sur un autre, et d'une action qui consiste dans une reproduction quasi photographique d'un cliché cérébral par la plaque sensible d'un autre cerveau”.[4] O livro de Coccia me parece ser um ponto de apoio essencial para a revalorização da obra de Tarde – especialmente livros como L’opinion et la foule ou La psychologie économique que, por sua vez, servirá para estender a antropologia do sensível de Coccia para os temas políticos e econômicos, temas vitais da antropologia sociocultural contemporânea. Naturalmente, há também outras idéias importantes que servirão de conectores entre o livro de Coccia e a antropologia sociocultural contemporânea: como a semiótica de Peirce (ainda que interpretando-a um pouco do avesso, enfatizando mais a primeiridade do que a terceiridade), ou a teoria do Umwelt de Uexküll (que se combinaria com a teoria de Adolf Portmann, da qual Coccia retira conseqüências filosófico-antropológicas importantíssimas em suas reflexões sobre a vestimenta e o hábito), e, obviamente, toda a obra de Deleuze.

5. Um comentario final, pessoal, a partir de meu próprio trabalho sobre a “antropologia das imagens”.[5] No artigo mencionado, busquei compreender o que poderíamos chamar de a parte subterrânea da prática antropológica: a experiência do trabalho de campo como experiência do aparecer (inspirado em Bergson e acompanhando, sem saber, Coccia bem de perto), a relação geralmente invisível entre o antropólogo e a fotografia etnográfica (essa superfície extraída do campo para a “eternidade”), e a prática do cinema etnográfico (no qual intervirão, no seio do ato de filmagem, os sujeitos filmados) como trabalho mais diretamente ancorado no imaginal. Mas penso que minha concepção de imagem era mais fenomenológica e menos metafísica que a do filósofo italiano: chamei de “imagem” o aparecer da experiência assim como a imagem fotográfica ou cinematográfica, para pensá-los conjuntamente, mas não cheguei a equiparar o estatuto ontológico dos dois, como Coccia faz em seu livro (e com toda razão). Depois de A vida sensível, poderei afirmar com mais ênfase a tese que eu tinha em mente quando escrevia o artigo: “todo antropólogo é antropólogo das imagens”. Ou seja, poderei dizer que, sem a intervenção da técnica de reprodução[6], o antropólogo já é uma espécie de câmera-gravadora da imagem exterior e interior, visual e auditiva (e olfativa, tátil, etc.), verbal e não verbal[7]: as imagens “se gravam” sem cessar no intracorpo do antropólogo para a eternidade.[8] E aqui não posso deixar de apontar que a antropologia da imagem como “antropologia do entre” nos ajudaria a compreender melhor – por fim – a obra do etno-cineasta mais emblemático de todos os tempos: Jean Rouch. Como disse no meu artigo, Rouch não parava de trabalhar justamente entre: “entre a antropologia e o cinema, entre África e Europa, entre o tradicional e o moderno, entre a vida cotidiana e o ritual de possessão, entre o real e o imaginário, entre o documentário e a ficção, entre o visual e o sonoro, entre a criação e o ensino”[9], e isto, precisamente, através dessa superfície – tanto fina quanto profunda – da imagem cinematográfica. O alcance do horizonte assim aberto, no momento, para mim, é incalculável.

Tradução de Alexandre Nodari


[1] Esta visão aberta do homem se mantém intacta mesmo nos momentos, a meu juízo, mais comprometidos, como quando menciona a teoria lacaniana do “estádio do espelho”, uma teoria baseada, em minha opinião, em uma concepção bastante ocidental-moderna do homem. [Voltar ao texto]

[2] O autor é bastante claro sobre o estatuto ontológico deste terceiro espaço. Gostaria apenas de apontar aqui que, pessoalmente, a expressão mencionada produziu em mim certas confusões. Outras caracterizações deste “terceiro” espaço feitas por Coccia – meio, debilidade, intentio, similitude, micro-ontologia, etc. – me pareceram totalmente reveladoras. [Voltar ao texto]

[3] J. v. Uexküll, Mondes animaux et monde humain, Denoël, 1965, chap. 1. E, às vezes, a superfície, por ser essencialmente um simulacro, lhe engana ; depois do desmentido, o carrapato voltará a subir a árvore. [Voltar ao texto]

[4] G. Tarde, Les lois de l’imitation, préface de la deuxième édition, 1895. Cabe acrescentar que aquí os termos “espírito” ou “cerebro” não devem ser tomados de modo estrito, já que que, para Tarde, a imitação dizia respeito à física, à biologia e à sociologia, conjuntamente. [Voltar ao texto]

[5] T. Yanai, “Bosquejo de una teoría de antropología de las imágenes: para una nueva ‘imagen del pensamiento’ antropológica”, Quaderns-e n. 16(1-2): 16-30, Institut Català d'Antropologia, Barcelona, 2011 (http://www.antropologia.cat/quaderns-e-164). [Voltar ao texto]

[6] Diz Coccia: “A partir do momento em que existe o sensível, a partir do momento em que nascem as imagens, as formas deixam de ser únicas e irrepetíveis. A técnica não tem nada a ver [com isso]. A reprodução das formas é a vida natural das imagens” (p. 33-34). [Voltar ao texto]

[7] Cf. a “fotografia inter-espiritual” de Tarde (ibid.). [Voltar ao texto]

[8] Ainda que a maioria delas, rápidamente, “se percam” para a eternidade, talvez como todas as coisas importantes. [Voltar ao texto]

[9] Yanai, op. cit., p. 25. [Voltar ao texto]

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.