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Contributions à la guerre en cours,
TIQQUN
Paris,
Éditions La Fabrique, 2009


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TIQQUN, o retorno
por Giorgio Agamben

Nota: Apresentação de lançamento de TIQQUN. Contributions à la guerre en cours, Éditions La Fabrique, Paris, 2009 (disponível no endereço http://www.lafabrique.fr/spip/IMG/pdf_Contributions.pdf), organizada por Eric Hazan e realizada no Lavoir Moderne Parisien, em 19 de abril de 2009. Os dois únicos números da revista TIQQUN podem ser baixados no seguinte endereço: http://www.bloom0101.org/. O vídeo com a apresentação de Agamben pode ser visualizado em http://www.rueleon.net/tv/tv.rueleon.php?Id=391. A transcrição e tradução da apresentação foi realizada por Erick Corrêa.

Entre 1975 e 1984, no momento em que o pensamento político conheceu uma fase de estagnação, os trabalhos de Michel Foucault vieram desobstruir o terreno dos falsos conceitos que lhe concernem. Em um curso de 05 de janeiro de 1984, Foucault resume sua estratégia em dois pontos. Primeiro ponto: substituir a história da dominação pela análise dos procedimentos e técnicas de governo. Segundo ponto: substituir a teoria do sujeito e a história da subjetividade pela análise histórica dos processos de subjetivação e das práticas preventivas. Um claro abandono, portanto, dos universos vazios que monopolizaram a atenção dos teóricos da política (lei, soberania, vontade geral, etc.), em proveito de uma análise detalhada das práticas e dos dispositivos governamentais. Uma análise do poder, portanto, não como hipóstase separada, mas como relações de poder, e do sujeito não como posição fundante ou transcendental, mas como análise pontual das práticas e dos processos de subjetivação.

Creio que é preciso partir do significado do surgimento de TIQQUN no pensamento político, quinze anos após Foucault.

Se havia em Foucault, como vimos, um abandono sem reservas de toda perspectiva antropológica, entretanto, no cruzamento entre as técnicas de governo e os processos de subjetivação, talvez o espaço tenha permanecido vazio. Ou melhor, houve nesse período a figura de um texto extraordinário de 1983 chamado La vie des hommes infâmes, sobre a “vida infame” de homens sem rosto, extraída de arquivos policiais recém-descobertos, sobre os quais o encontro com o poder projetara subitamente sua luz sombria.

A novidade de TIQQUN é que ela opera, por sua vez, ora uma radicalização, ora uma nuance de duas estratégias (análises das técnicas de governo e dos processos de subjetivação) que em Foucault talvez não tenham encontrado seu ponto de junção.

Como Foucault demonstrou em sua Microphysique du pouvoir, se o poder circula e sempre circulou nos dispositivos jurídicos, lingüísticos, materiais, etc, para TIQQUN o poder é apenas isto. TIQQUN não se coloca mais em face da sociedade civil e da vida como hipóstase soberana, ela coincide inteiramente com a sociedade e com a vida. O poder não tem mais centro, ele é um acúmulo imenso de dispositivos nos quais vem prender-se o sujeito ou, antes, como diz Foucault, os processos de subjetivação. Diante disso, o gesto de TIQQUN é de juntar, fazer coincidir sem reservas os planos das análises que em Foucault são ainda separados (dispositivos de governo e sujeito). Há um texto chamado Métaphysique critique [Nota do tradutor: Agamben se refere ao texto, originalmente publicado em TIQQUN II, chamado Une métaphysique critique pourrait naître comme science des dispositfs], publicado na presente edição, que diz claramente: “Uma teoria do sujeito só é possível como teoria dos dispositivos”. É toda a pesquisa derrisória do novo sujeito político que paralisou e ainda paralisa a tradição de esquerda na Europa.

Portanto, a teoria do sujeito e a teoria dos dispositivos coincidem. É nessa zona opaca de indiferença entre essas duas teorias que se situam os textos reunidos nesta edição, a saber, L’introduction à la guerre civil e Une métaphysique critique pourrait naître comme science des dispositfs (assim como Théorie du Bloom, de TIQQUN I).

Nesse sentido, é evidente que, se a questão se situa nessa zona de indiferença, todos os conceitos da política clássica como Estado, sociedade civil, classe, cidadão, representação, etc., perdem seu sentido. Mas, por outro lado, é unicamente nessa perspectiva, nessa zona opaca de indiferença, que os conceitos elaborados por TIQQUN como Bloom, Partido Imaginário, guerra civil (no sentido particular que essa palavra assume no texto) adquirem seu sentido próprio. E é justamente por situar-se em uma zona de indiferença que eu creio ser preciso compreender as práticas de escrita, de pensamento e de ação que se adicionam em TIQQUN.

No que se refere à escrita, que como observou Eric [N.T.: Eric Hazan, que falou antes de Agamben na apresentação do livro, é o fundador da editora La Fabrique e editor de TIQQUN em língua francesa. Autor de, entre outros livros, L’Invention de Paris (Seuil, 2002) e LQR: la propagande du quotidien (Raisons d’agir, 2006)] não se trata simplesmente de uma escrita anônima, nem mesmo pseudônima ou heteronímica, vemos que os esforços da polícia para atribuir a todo custo um texto a um autor ou um autor a um texto não podem abolir. Não há termo possível para esse texto, pois ele se situa em uma zona onde o conceito de autor não tem mais sentido. Foucault já havia demonstrado que o conceito de autor sempre funcionou em nossa cultura de um modo duplo: por um lado, é uma figura do sujeito e, de outro, um dispositivo de atribuição de responsabilidade penal.

Ora, Julien Coupat e seus amigos não podem ser os autores de nenhum texto publicado em TIQQUN ou em outro lugar, pois eles se situam justamente em uma zona onde sujeito e dispositivo coincidem a tal ponto que a categoria mesma de autor não pode mais funcionar, não porta mais sentido. Do mesmo modo, creio que somente na perspectiva aberta por TIQQUN, como por exemplo, a constatação da guerra civil permanente instaurada pelo Estado em países dito democráticos adquire seu sentido, de outra forma inexplicável.

As leis atualmente em vigor na França e em outros países ditos democráticos da Europa, são três ou quatro vezes mais repressivas que as leis em vigor na Itália sob o fascismo. Isto é um fato indiscutível, de todos os pontos de vista, tecnicamente, etc. Outro fato que sempre associamos aos estados totalitários é a instituição de tribunais especiais. Ora, o tribunal e o juiz que trata, do caso Tarnac [Nota do editor: Agamben refere-se à prisão de nove pessoas, entre elas, Julien Coupat, no vilarejo de Tarnac, na França, sob a acusação de terrorismo. Sobre o assunto, Agamben publicou o texto “Terrorismo ou tragicomédia”], escolhidos não se sabe como nem por quem, constituem efetivamente um tribunal especial. Vocês sabem que, por definição, um tribunal especial é destituído de toda legitimidade, pois ele fere tanto o princípio de igualdade dos indivíduos diante da lei quanto o princípio do juiz natural. Vejam que o princípio da lei em nossa sociedade é simplesmente destituído de toda legitimidade. Nesse sentido, hoje aceitamos que haja tribunais especiais, mas reprovamos a Itália fascista, a Alemanha nazista de terem instituído tribunais especiais.

Creio que é sempre na perspectiva de TIQQUN sobre a guerra civil em curso, que se torna compreensível a extensão, a toda população, da aplicação de medidas biométricas que foram concebidas inicialmente para o criminoso reincidente. Sabemos que em breve todo cidadão francês terá uma carteira de identidade com dados biométricos. Portanto, todo cidadão é tratado como criminoso ou terrorista em potencial. Ora, se o Estado nos trata como criminosos ou terroristas em potencial, não devemos nos espantar com o fato de que aquele que se recusa a submeter-se ou denuncia esse estado de coisas seja tratado justamente como terrorista.

Gostaria de concluir lembrando uma história que me foi contada por um amigo que participou da Guerra Civil Espanhola, em 1936. Havíamos enviado este amigo, um poeta, com outro poeta, Rafael Alberti, aos Estados Unidos, um governo republicano, a fim de tentar certo apoio do governo norte-americano. Mas eles foram bloqueados na entrada do país pela polícia que, fazendo interrogatórios intermináveis, os acusaram de serem comunistas. Após dez horas contínuas de interrogatório, meu amigo disse a eles: “escutem, eu não sou comunista e jamais fui comunista, mas o que vocês acreditam que um comunista seja, isto, eu o sou”. Creio que é preciso dizer o mesmo agora: Não somos e jamais seremos terroristas, mas o que vocês acreditam que talvez um terrorista seja, isto nós o somos!

Transcrição e tradução de Erick Corrêa


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.