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99 Poemas

de Joan Brossa
(Tradução de Ronald Polito)

Seleção de
Ronald Polito
e Victor da Rosa

São Paulo, Annablume
(Selo Demônio Negro), 2009


Um para cem? 99 poemas de Brossa

por Pádua Fernandes

O poeta e historiador Ronald Polito já nos deu, do catalão Joan Brossa (1919-1998), os Poemas Civis, traduzidos com Sérgio Alcides, e Sumário Astral e outros poemas (neste, foi responsável pela tradução para o português; a tradução espanhola ficou a cargo de Pere Galceran-Uyà). 99 poemas (São Paulo: Annablume, Coleção Demônio Negro, 2009), com traduções apenas de Polito, e organizado e selecionado por ele e Victor da Rosa, inicia-se com uma breve apresentação escrita pelo segundo organizador que pode ser resumida às frases finais: “90 anos de vida, 10 anos de morte, 99 poemas. É quase magia. São coisas que, afinal, só podemos aprender com Brossa.” (p. 15).

No posfácio de Polito (Uma relação concordante ou discordante), lê-se provavelmente o texto mais revelador que se fez no Brasil sobre esta poesia (por sinal, nele são incluídas traduções de poemas que não integram o corpo principal da antologia, que, assim, ultrapassa o número de cem poemas e desautoriza a numerologia do prefácio). Foram selecionados os poemas não visuais em versos livres; à possível objeção de que esta não seria a parte mais valiosa da obra, ele replica que Brossa também foi inventivo nesses poemas; ademais, “No fundo, não importa a forma, mas sim esses movimentos entre contrastes.” (p. 176).

Tais movimentos, em que Brossa aproxima elementos de ordens aparentemente muito distintas (como o povo e um boneco joão-teimoso), Polito analisa-os segundo a sinestesia e o ideal das correspondências, que Baudelaire, em conhecido soneto, introduziu na poesia moderna. Em Brossa, temos em muitos poemas uma “utopia concretizada, enquanto pequena epifania” (p. 166), numa “perspectiva analógica do pensamento mágico” (p. 167-8) que o obrigará a tentar transformar a vida em arte. Polito brilhantemente discorre sobre as possibilidades e limitações (como poemas repetitivos) desse projeto.

Na antologia, os poemas são curtos, porém vastos por suas camadas de significados e seu encadeamento: “(Um poema com um só plano/ sempre dá a sensação de pequeno.)” (p. 77); “Atenuados em certo aspecto, um poema é o prolongamento/ do outro; aqui, então, conquisto um outro pedaço/ e inicio novamente a sua expansão.” (p. 129).

No primeiro livro, Fez-me Joan Brossa, (significativo título), lê-se: “E agora peruca raspada, sobrancelhas espessas/ e esta mesma cara coberta de barba.”; a peruca é assimilada ao cabelo, e a barba a maquilagem – tudo é artefato, nada escapa ao fazer artístico. Nada mais consequente, portanto, do que a comparação da poesia com a calcografia em Calcomania (p. 85). Tudo é artefato, mesmo o que não é convencionalmente poético. Sua desmesurada ambição é a de que nada possa estar fora do poema: “A noite/ O dia// Partimos o poema meio/ a meio.” (p. 55).

Onde tudo é poético, não há mais espaço para a poética? Este é um risco que faz Brossa trabalhar sempre no limite do literário com outros gêneros: “Olhe: são os pássaros que pulam/ de galho em galho.// Eis aqui o limite da expressão/ literária.” (p. 61). Uma exceção é sua poesia de amor, que é mais convencional (Título luminoso, porém, possui todo o inusitado desta poesia: “Há guerra de laranjas na casa de um poeta”, p. 101). Esta antilira cria suas outras convenções, que aproximam Brossa das artes plásticas e questionam o discursivo: “Vocês tornariam falso este poema/ com outras interpretações.” (p. 49); “Não se trata de textos em que já tenha havido/ uma intenção poética: me interessam/ textos neutros, funcionais, que eu posso converter/ em poéticos pelo fato de tê-los selecionado.” (p. 115); “O silêncio é o original,/ as palavras são a cópia.” (p. 145).

Os materiais de que se compõe Brossa, no entanto, não estariam completos se as convenções políticas e sociais também não fossem radicalmente questionadas em nome de uma ética de esquerda contra o capitalismo, em um questionamento que é o da linguagem: “Os adesivos publicitários, transparentes,/ não desvirtuarão as propriedades das moedas/ que os portem nem impedirão que possam/ ser introduzidas nas máquinas.” (p. 123): o raso infinito da linguagem publicitária adere plenamente aos bilhões do capital. O genial Experiência questiona as hierarquias de classe (p. 63).

Em Monumento, lemos: “Consiste em esculpir/ o interior de um buraco/ monumental de modo/ que o vazio afete a/ forma de uma estátua.// Propiedad particular./ Prohibido el paso.” (p. 55) Note-se o uso do espanhol para os interditos do direito de propriedade – a língua do governo fascista (o livro é de 1969), que reprimia, também no campo linguístico, os catalães. Askatasuna, o título de um de seus livros, significa liberdade em... basco. Vê-se aqui uma ética antimonumentalizante e antitriunfalista: “O Homem sempre fala com a autoridade/ que lhe dá o fracasso.” (p. 141).

A ironia é outro material imprescindível; do livro Liberdade, foram recolhidos poemas que aludem à censura e às forças de segurança. Apenas na página 71, podemos ler quatro exemplos: “A censura suprimiu nove poemas:/ sinal de que os outros não valem nada.”; o poema escrito em espanhol “É proibido/ entrar na obra/ sem o correspondente/ capacete de proteção.” (a academia muitas vezes produz esses capacetes); este outro faz-nos lembrar do aviso “entre sem bater” à porta do Barão de Itararé, depois de visita da polícia de Getúlio: “Não, você se engana; é o vento/ que golpeia a porta.” Nem é de uma invulgar consciência ética materialista: “Como podemos dizer que Deus não existe/ se nem mesmo há um Deus que não/ existe?” Versos corajosos contra a tradição inquisitorial espanhola, como estes: “Quando diz deus a cruz se apodera da barata” (p. 107).

O livro conta ainda com uma “coda brossiana”, escrita pelo critico de arte, artista plástico e escritor espanhol, Adolfo Montejo Navas, que destaca o jogo libertário da poética de Brossa e aponta correspondências com outros autores, como Lezama Lima e Alberto Pimenta.

Lamente-se apenas o trabalho editorial da Annablume (apesar da beleza da capa de Vanderley Mendonça, com desenho de Guto Lacaz), que deixou o livro com problemas de revisão nos textos em prosa (em revanche, a revisão da poesia, feita pelos escritores Josep Domenèch Ponsatí e Pere Galceran-Uyà, é exemplar): vários erros de separação de sílabas, obviamente feita por um programa automático; a tradução para o português de La clau a la boca aparece na página em catalão (p. 10) e sem a indicação do ano do livro; há deslizes como “um pesquisa” (p. 161); “da força humanas” (p. 182); “em apostar nessa diferencia” (p. 185), “poética que se saboteia” (p. 187), “E Sem querer” (p. 188), “condição se nem qua non” (p. 190), “isso pode ser ainda pais contrato” (p. 176), entre outros.

Concluo, porém, com Brossa e sua caracterização da música de câmara, adequada também para esta grande poesia, tão singular: “[...] trata-se/ de escutar a si mesmo, mais que/ de fazer os outros escutar” (p. 115). Deste um pode-se partir para o vário.

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.