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Without sanctuary
lynching photography
in America

de James Allen, Hilton Als, John Lewis e Leon Litwack

Santa Fe, Twin Palm Publishers, 2000


O espetáculo da barbárie:
fotografia, tortura e lynching
por Sílvia Regina Lorenso Castro

"Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees
"

Poema, ou letra de música – ambos e nenhum ao mesmo tempo. Os versos são parte de um poema escrito por Abel Meeropol, em 1936, um professor de ascendência judia, morador do Bronx/Nova York, aterrorizado com a semelhança entre o extermínio judeu na Alemanha, e o linchamento de afro-norteamericanos no sul dos Estados Unidos, quando corpos de homens negros desciam das árvores como estranhos frutos, cheirando uma estranha essência de carvão. Em 1939, mesmo temendo represárias, Billie Holliday transformou o poema em canção, ícone do protesto contra os lynchings, fenômeno em que corpos negros eram brutalmente violentados, assassinados, pendurados em árvores e depois queimados – quando não eram queimados vivos – tudo num imenso espetáculo em praça pública, fotografado pela lente de profissionais ou amadores.

As fotografias tiradas durantes os lynchings mostram não apenas os corpos em chamas, degolados, cortados, mas pessoas fazendo poses, sorrindo e orgulhosas por participarem de um ato que visa mostar aos negros o que pode acontecer se “eles não souberem o seu devido lugar.” Mais assustador ainda é o fato de que muitas dessas fotos foram transformadas em cartões-postais, enviados àqueles que não puderam comparecer ao espetáculo da barbárie. Nos “postais” há inscrições do tipo: “I missed you there”, “I wish you were there”, “All ok and I would like to get a post from you. Bill, this was some Raw Bunch”; “Well, John – this is a token of a great day we had in Dallas, March, 3, 1910, a negro was hung for an assault on a three year old girl. I saw this on my noon hour. I was very much in the brunch. You can se ethe negro hanging on a telephone pole.”

Esse é o assunto principal do livro Without Sanctuary, dos autores James Allen, Hilton Als, John Lewis e Leon F. Litwack. Eles coletaram imagens e histórias da violência racial praticamente pelos brancos, principalmente, mas não apenas, sulistas, de 1890 a 1930, o que, do ponto-de-vista histórico, é algo muito recente.

A obra discute não apenas as imagens dos “frutos estranhos descendo as árvores”, mas também as representações daqueles que praticavam os enforcamentos, além de apontar a participação ativa – e cúmplice – do público. Não raro, os lynchings funcionavam como um evento que reunia homens, mulheres e crianças, em uma espécie de “programa de família”. O grotesco e o fantástico.

O que significa queimar vivo uma pessoa, pendurá-la em uma árvore, olhando atento e prazeirosamente enquanto ela se debate, e depois ficar ali cheirando a fumaça que desce de suas cinzas? O que significa vender e comprar cartões-postais, enviá-los a entes queridos? Que desejo é esse de ver o outro consumido em chamas? Que prazer é esse de transformar o outro em algo menor que coisa? Como se trabalha o imaginário para que ele se torne cúmplice por opção da crença segundo a qual a alguns deve-se preservar a vida, e a outros deve-se imputar a morte?

Os autores refletem a respeito dessas questões, e nos convidam a não esquecer que o fenômeno do racismo faz parte de uma estrutura muito mais complexa, tendo se iniciado com o encontro entre colonizador e colonizado e prosseguido vivo nas estruturas contemporâneas da nossa sociedade.

Um bom exemplo disso está nas imagens amplamente divulgadas pela mídia das fotografias de torturadores e torturados em Abu Ghraib. As fotos chamam atenção tanto pela crueldade das torturas impostas aos prisioneiros, quanto a imagem de prazer, satisfação e naturalização da violência praticada pelos soldados americanos. E tudo isso devidamente fotografado. Por que, após torturar, matar, dilacerar, os torturadores e assassinos dos lynchings ou os torturadores de Abu Ghraib querem tirar fotos de suas vítimas, com suas vítimas? Por que essas cenas são fotografadas ou filmadas?

A alguns, pode ser tentador acreditar que isso é um fenômeno esporádico e pontual na sociedade. No entanto, uma lente mais atenciosa perceberá logo que transformar em espetáculo o abuso, e que fazer circular imagens de corpos torturados/assassinados/queimados – muitas vezes explorados erótica e sexualmente para causar prazer aos torturadores/assassinos/racistas – representa uma continuidade na história do racismo pelo mundo.

Nesse sentido, Hazel Carby (A strange and Bitter Crop: The Spetacle of Torture, 2004) tem toda razão em dizer que as fotografias da tortura no Iraque não podem ser consideradas elementos isolados em um dado momento da história americana, mas que elas devem ser vistas como descendentes diretas dos cartões-postais dos lynchings, expondo corpos negros como mensagem de ódio e medo. Carby nos lembra ainda que ao fazer pose para as fotos, e dispor os corpos ora como pirâmides humanas (em Abu Ghraib), ora pendurados em árvores (lynchings), esses sujeitos não estão inscritos em cenas momentâneas, mas meticulosamente ritualizados em uma performance muito bem desenhada, com direito a sorriso e a presença do corpo bem definido.

A combinação de brutalidade, violência, subjugação e desejo é algo que remonta ao encontro colonial. De lá para cá, a hegemonia branca vem empreendendo um poderoso projeto de transformar pessoas, de sujeitos em objetos, de humanos em inumanos. E não é à toa a recorrência dessas relações desiguais entre brancos e não-brancos (afro-descendentes, judeus, população do mundo árabe, etc). Mas voltemos a Billie Holliday:

“Pastoral scene of the gallant south,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.
Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.”

Edicão integral:
PDF | FLASH

 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.