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Virtuosismo e revolução
a idéia de ‘mundo’ enrte a experiência sensível e
a esfera pública

de Paolo Virno 
(Tradução de
Paulo Andrade Lemos)

Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira
(Col. Política no Império), 2008


Milagre e multidão

por Leonardo D'Ávila de Oliveira

A articulação do intelecto em geral fora das relações de trabalho assalariado significa possibilitar a ação em esfera pública não-estatal

Na recente tradução, feita por Paulo Andrade Lemos, de Virtuosismo e Revolução de Paolo Virno - título lançado pela coleção “Política no Império” da editora Civilização Brasileira -, o leitor se depara com um pensamento sobre a relação entre ação política e os meios materiais de produção. Um pensamento que deve muito a Marx sem, no entanto, pretender-se dialético. O livro é composto por dois ensaios: o primeiro deles, chamado “Mundanidade: a idéia de ‘mundo’ entre a experiência sensível e a esfera pública”, trata de explorar o problema do sublime em Kant bem como o do milagre e do maravilhamento em Wittgenstein. Já o segundo, chamado “Virtuosismo e Revolução: a teoria política do êxodo” consiste num sucinto tratado sobre a ação política, o qual não aborda, como o título sugere, viagens ou fugas, mas o abandono e a ação dos exilados, uma vez que é o abandono uma das últimas possíveis experiências comuns. No entanto, ambos os textos são mais bem iluminados se lidos em conjunto, até mesmo porque tratam dos mesmos conceitos, os quais são paralelamente esclarecidos.

Virno primeiramente retorna a Kant e Wittgenstein para repensar a teoria do conhecimento no sentido de afastar a “coisa em si kantiana” ou o “irrepresentável” como irrealizações em vez de algo incognoscível, ou além. Pretende, portanto, reformular o problema para dizer que tanto o sublime quanto o milagroso têm sua razão de ser por ainda não terem se finalizado ou se apresentado. Em outros termos, são noções que não diriam respeito àquilo que não se pode conhecer, mas aquilo que ainda não se realizou e que, assim, pode ou não se realizar, de forma ao mesmo tempo esperada e imprevista. Diz o autor que “O além mundano da linguagem não é, porém, um autêntico ‘além’, mas sim algo que ainda pode ser percebido. Igualmente, o ‘além’ lingüístico do mundo não é um autêntico ‘além’, mas sim algo que ainda pode ser proferido”.

Ainda assim, o milagroso e o sublime não são resolvidos com este gesto. Muito pelo contrário, a experiência de maravilhamento do mundo pode ser reformulada desde que sejam mantidos os problemas do sublime e do miraculoso, e que se rejeite qualquer forma de regressão ao infinito quando se trata de pensar o irrealizado da natureza amorfa. Ciente de não poder elucidar ou pelo menos mapear a obscuridade do mundo ou da linguagem, Virno pretende explorar esta intersecção: “A linguagem não está para o mundo (nem o espelha, nem corresponde a ele), mas compartilha com o mundo o modo de ser de uma dynamis inconsumível”. A potência (dynamis) que tanto envolve o mundo como a linguagem, entretanto, é estranhamento originário e experiência indivisível que motiva tanto o sentimento de ameaça quando a busca por proteção. Isto não chega a significar, no entanto, toda uma grande edificação, construída pelos que se sentem fora de casa, completamente segura e promissora como no binômio “cultura x natureza”. A busca que se destaca no tempo da queda de experiência se trata de um retorno àquilo que é meramente comum à multidão. Portanto não se está a falar de uma esfera mais alta de convivência, mas, muito pelo contrário, do campo mais baixo possível que qualifica um discurso ou uma ação, a experiência de não se sentir em casa, bios xenikos. “O ‘não-se-sentir-em-casa’ dá relevo, ou melhor, publicidade àquilo que é efetivamente comum: a potência do intelecto, a vida da mente. O intelecto público constitui principal refúgio em relação a um contexto vital sempre bruto e sempre potencial. Recurso apotropaico, justamente. Mas o intelecto, protegendo da contingência do mundo sensível, introjeta sua ambivalência e a reproduz no plano ético: ele mesmo se apresenta, ao mesmo tempo, como ‘condição última’ do perigo e como fonte de segurança. Os dispositivos apotropaicos que, decorrendo dele, articulam a defesa preliminar oferecida pela vida da mente, podem resultar, por vezes, extremamente ameaçadores ou realmente salvíficos. O general intellect é, portanto, o tronco unitário de que se originam tanto o perturbador como o bem-estar”.

É intelecto público o contexto no qual os muitos sem-casa interagem, separam-se e fazem valer (ou não) sua própria existência. Este general intellect se exterioriza em comunidade de exilados e pode oferecer uma resposta autenticamente política ao monopólio estatal da época do Império. O que assusta, no entanto, é que essa comunidade também pode não surgir e isto é o ameaçador e desafiador, ou seja, a própria ausência de espacialização do intelecto pode dar lugar ao continuísmo social. O intelecto público, muito embora não esteja em nenhum lugar, pode dar lugar. Caso tal não ocorra, diz Virno, caso a multidão não possa estar associada pela potência da mente em uma esfera pública, há uma inevitável perda de mundo qualificada pelo medo e, sobretudo, suas conseqüências desastrosas, a começar por um estar à mercê do Estado ou das muitas organizações que dominam a própria produção. Qualquer esperança política, quando tomada apenas no binômio intelecto-trabalho, por mais que tenha algo próximo à autêntica ação, somente será politicagem. Portanto, o autor preza muito por uma espacialização e um campo prático de atuação política aliado a um espaço de intersubjetividade, ou compartilhamento a partir do intelecto, muito embora o intelecto puro não possa ser localizado pela especulação teórica. Eis a vital importância de um contexto que dê materialidade às discussões e que, portanto, transforme a comunhão em comunidade política, o medo (perturbador) em bem estar. Isto faz pensar que não é porque se abandona qualquer pretensão teleológica na política atual que existe a necessidade de um abandono de um contexto e principalmente de uma posição frente às relações.

No entanto, no período pós-fordista, cada vez mais o trabalho já não produz obra. Ele fica em sua indistinção entre produtor e produto, muito próximo do trabalho de um músico, o qual necessita de uma platéia para expor sua virtuose, até que se vê completamente dependente destes mesmos mecenas. Atualmente, cada vez mais o número, ou a peça não consistem senão na execução de uma partitura absolutamente genérica e amplamente conhecida. Eis que o trabalho se encontra a par do general intellect, dos lugares comuns da multidão. No entanto, ainda que ele resgate algo da ação política, seus resultados são direcionados a organizações e hierarquias determinadas. O excedente intelectual aplicado no trabalho é algo muito próximo a um virtuosismo que somente contribui em uma função estreita e que mantém intocáveis as hierarquias dos processos de produção. É uma forma de ação que consiste somente em garantir ao indivíduo uma certa proteção ou ascensão social que não chega a transformar o mundo. Para Virno, portanto, trata-se de buscar uma ação política separada e de natureza oposta ao trabalho. Eis que a ação virtuosa em termos arendtianos não tem mais lugar visto que o trabalho se proliferou em novas formas que em nada condizem com um espaço público e o Intelecto tradicional morreu. De nada adiantaria uma ética da aparência que não é capaz de lidar com o extra-sensível ou o extra-político ou mesmo com o problema do Estado. Muito pelo contrário, é nos processos produtivos materiais que se deve encontrar as primeiras perguntas para a condição contemporânea e a organização em esfera pública não estatal, em última instância, uma nova relação com o miraculoso e com o fato de não-se-sentir-em-casa. Neste sentido, o autor difere a atuação estatal daquela que é promessa de uma nova comunidade republicana da seguinte maneira: “Em geral, o fato de que Hobbes e Schmitt reservem o Milagre para o soberano não significa, de modo algum, que eles neguem a conexão entre Ação e Milagre: ao contrário, de certo modo a confirma. Para esses autores, de fato, apenas o soberano age politicamente. O ponto não está, portanto, em negar a importância do estado de exceção em nome de uma crítica à soberania, mas em compreender a forma que ele pode assumir, uma vez que a Ação política tenha passado às mãos dos Muitos. Insurreições, deserções, invenções de novos organismos democráticos, aplicação do princípio do tertium datur: eis os Milagres da Multidão, aqueles que não cessam quando o soberano os proíbe”.

Ainda que a ação segundo o intelecto em geral não se dê no próprio campo do trabalho, mas em espaços dados pelo intelecto em comum, ela não consiste em uma oposição direta ao trabalho. Em vez de incontinência, a ação política democrática e de base encontra-se muito mais na intemperança. Não se trataria porém de, tal como pregaria a tradição liberal, em trazer o novo começo para o espaço público, mas de um esperado imprevisto – eis a busca de Virno. Não, portanto, de um prodígio, tal como uma intervenção divina que modifica o mundo com algo inédito (isto temos todos os dias), mas do milagre, que muito mais seria da ordem do maravilhamento com o mundo pelo próprio fato dele existir. Para tanto, não há necessidade de uma teoria que tentasse sistematizar e explicar toda a dinâmica deste campo misterioso. Muito pelo contrário, refuta-se uma regressão ao infinito para que se possa aceitar aquilo que não é transgressão ou inovação, mas ameaça (intemperança). Em uma época em que o multiculturalismo e o politicamente correto vigoram de forma absolutista – contexto no qual as empresas são cidadãs ou o que é nefasto se diz sustentável –, sem dúvida Virno traz em seu livro um pensamento interessante para se refletir a potência de forma absolutamente imanente já que não é a atuação prodigiosa de artistas, políticos ou empresários (ou operários do mês) iluminados que traz o bem estar. É justamente contra essa decência insuportável que se mantém pelo medo de transformação que cumpre a uma política não-estatal começar a pensar.

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.