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Os anões
de Veronica Stigger

São Paulo,
Cosac Naify, 2010


Do espetáculo sem desculpas

por Flávia Cera

A crueldade das narrações de Veronica Stigger já é conhecida do público desde Gran Cabaret Demenzial e O trágico e outras comédias. Em Os anões, lançado recentemente em uma linda edição da Cosac Naify, não é diferente. Essa crueldade, como ressalta Mario Bellatin na quarta capa, longe de parecer gratuita, parece necessária. Veronica assume o papel da “escritora má” que leva às últimas conseqüências algo que poderia ter passado despercebido, e um dos aspectos mais interessantes com que nos defrontamos ao ler os contos é que eles têm a capacidade de exercer a mesma função do sonho: a realização de um desejo. Ora, quem não se irrita (ou se irritou) e esbraveja (ou já esbravejou) quando alguém demora na fila por puro capricho? E não temos exatamente um choque (mas sim, um quase-riso) com a descrição do linchamento, depois do estalar quase instantâneo da fúria de outros consumidores, do casal de anões que queria mais e mais informações sobre os docinhos da confeitaria. Veronica é sempre certeira quando abordada sobre esses chamados “absurdos”, basta procurar qualquer entrevista e encontraremos a constatação clara e lúcida de que essas pequenas doses de crueldade acontecem corriqueiramente. Ou seja, não se trata de uma denúncia do espetáculo, porque está tudo aí, tampouco de constatar a anestesia da sociedade contemporânea que assiste esses episódios todos os dias e fica sem fazer nada. Sem moralismos, sem hipócritas tentativas de conscientização, e sem nenhum pouco de ingenuidade, Veronica transita entre o real e o imaginário, entre o acontecimento e a fantasia com uma proposta radical, e não complacente, de articulação do corpo que produz e recebe esse excesso. Aí está, creio, sua jogada singular.

Essa jogada, entretanto, não é, para a desgraça dos que gostam de encontrar na literatura um refúgio incólume e salvação das impurezas do mundo, uma alternativa ao espetáculo em que vivemos. Ao contrário, é de corpo inteiro a constatação de que estamos todos imersos (e a arte não escapa dessa situação) em uma gigantesca rede espetacular. Guy Debord asseverava a plenos pulmões que suas teses valeriam por longos anos; Stigger arremata a consolidação dessas teses como se pode ler, em Teleférico, nos aplausos que sucedem a queda dos atores coadjuvantes, ou, em Des cannibales, na sobrevivência baseada no turismo. Mas de maneira bem diferente do teórico situacionista, Veronica não tenta reatar com a experiência perdida e nem lamentar sua perda. Não existe um mundo que tenha que ser salvo, uma volta pré-histórica que nos mostre como devemos agir para sairmos desse enlace tão bem montado. Não se trata de reconstruir um mundo perdido, ao contrário, trata-se de ensaiar (em todos os sentidos do termo) um mundo por vir. Ao contrário do que Walter Benjamin postulou como pobreza da experiência em decorrência da violência da guerra, é na violência da guerra não declarada, ou melhor, no espetáculo integrado, que Veronica altera o foco da experiência para reafirmá-la sem saudosismo. Diante das curtas histórias não temos um choque, nem uma ruptura, não é um procedimento de distanciamento, e também não é um livro de terror que nos põe a gritar de desespero. É só depois, après-coup, diria Lacan (na medida em que os significantes estão esvaziados, e são preenchidos de sentido só depois), que o choque e a ruptura aparecem e ganham força porque estamos diante, e esse é o procedimento cruel de Veronica, da naturalidade dos acontecimentos: uma mãe não consegue não enforcar a filha que lhe propõe, tão doce e carinhosamente, um colar com o fio de lã; uma esposa não esboça reação maior pelo suicídio do marido que pela perda dos óculos, uma vendedora da confeitaria não faz mais que varrer a sujeira que são os corpos esfacelados dos anões para um canto. Anônimos, esses personagens adquirem uma carga de impessoalidade e, ao mesmo tempo, apontam para a possibilidade de que qualquer um pode repetir o feito, assumir-se autor. Uma banalidade maldosa transformada em notícia, como vemos em Caça ou Colheita. Uma banalidade difusa do mal, já que não conseguimos nomear os responsáveis, que vigora sob esse anonimato que é também o anonimato da guerra contemporânea. Mas essas histórias, de alguma maneira, funcionam como um alarme avisando que estamos conectados com o mundo, que somos, produzimos, recebemos e projetamos imagens: os acontecimentos de hoje se transformaram em notícia, em pura imagem, mas nem por isso deixaram de ser acontecimentos. Não é porque não se vai às ruas, crítica recorrente à juventude, que estamos anestesiados. Diante desse espetáculo em que tudo é convertido em imagem temos que pensar, justamente, sobre ela, sobre essa coisa amorfa e vazia.

Essa imagem sem fundo, esvaziada de racionalidade ou compaixão, do certo e do errado está no centro da cena em Os anões: uma atenção especial mais à forma que ao conteúdo, à superfície que à profundidade, à aparência – ao próprio espetáculo. E isso não acontece apenas nos casos em que supostamente teríamos um julgamento moral a fazer, mas também nas curtíssimas histórias, chamadas “Histórias da Arte”, que levam os nomes de Flávio de Carvalho, Maria Martins, Drummond, João Cabral. Os textos não parecem homenagens nem biografias, talvez objetos miniaturizados que poderiam compor uma coleção ou anões fantasmáticos que rondam os textos completamente descontextualizados e esvaziados de sentido. Ou ainda, na radicalização da dúvida que permeia a crítica literária: a literatura é documento? Veronica coloca uma cópia da sua certidão de nascimento intitulada Imagem Verdadeira para fechar o livro. O curioso é que nessa certidão “Verônica Antonine Stigger”, filha e neta de seus pais e avós, é do “sexo masculino”. Que verdade tem o documento, afinal? Ou, como alguns críticos costumam chamar, que retrato da realidade apresenta um documento? Veronica diz que a imagem é “verdadeira”, embora o documento tenha informações “falsas”. E é a forma que, mais uma vez, se apresenta. A indistinção entre verdadeiro e falso, que trafega nesse vácuo entre uma sentença e outra apresenta a equivocidade, o ensaio e o erro que está submetida a linguagem. Insistir sobre essa distinção é apostar na arte como uma esfera separada da vida, como uma voz sem corpo. E, nesse sentido, apropriando o termo pejorativo da crítica, Veronica mostra que o documento é apenas um retrato, uma superfície, uma pura imagem que não dá conta de uma totalidade, mesmo tendo como nome ou como “essência” a verdade. A verdade é, em última instância, um fundo falso e vazio. O mesmo procedimento de esvaziamento podemos perceber no conto A caverna: uma pequena porém exaustiva descrição das cenas, das áreas, dos gestos, dos corpos que se movimentam vestindo isso ou aquilo, com um cabelo assim, com um andar tal, um excesso de informação que não diz absolutamente nada, a não ser da sua aparência, da sua imagem, do seu modo, da sua moda. A moda, tema caro a um autor que interessa a Veronica, Flávio de Carvalho, não é outra coisa senão a nossa forma de estar no mundo, a imagem que projetamos e recolhemos do mundo. Um contágio, um contato, inevitável e desejável com o mundo e para o mundo que produz sensações, afetos, efeitos. Ou seja, Os anões – e podemos estender aos outros livros e contos de Veronica – dizem que nosso corpo é capaz, que temos possibilidades. A diferença é que os contos já não são tão de fadas: Branca de Neve poderia passar por uma saga parecida, mas radicalmente outra, se contada por Veronica Stigger, talvez ela fosse canibal e comesse alguns anões, talvez a madrasta a pegasse pelo pescoço sem mandar nenhum mediador, ou seu príncipe encantado se jogasse da sacada louco de tédio. As histórias já não têm um enredo que conflui para que tudo dê certo, elas não têm fórmula, mas todas têm um pouco de possível.

Veronica Stigger também escreve livros infantis. Ainda bem!

Próximos textos:
Tatuagem

(fragmento)

Genealogia bastarda de Veronica Stigger
(resenha)

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.