Alexandre Nodari: maio 2012 Archives
história do brasil - em 10 tomos
a Rocha Pombo
I
Portugal viu acaso a terra escondida e se apossou dela.
A gente lusa
desorientada em face daquele imprevisto não pôde imaginar o que era aquela
terra. Uma ilha perdida no mar imenso. Mas se apossou e comunicou o feito ao
venturoso Manuel, todo contente no sonho grandioso das conquistas bravas da sua
gente, que já havia traçado o gráfico para os lados do Índico.
E agora um acaso lhe
trazia a nova de mais uma façanha que foi além da imaginação dos discípulos de
Sagres.
Na fronta cabralina
viajava um escriba a soldo para relatar acidentes tormentosos e morosidades
daquelas jornadas à aventura. E relatou o que viu. No seu memorial de posse
falou da terra com ternuras moliengas. A terra era deslumbrante e fresca. Ele
viu logo que ela "era boa e fermosa". E deu-se pressa de acrescentar que "em se
plantando dar-se-á nela tudo".
Os homens de terralém,
muito [trecho ilegível] realizaram uma nova expedição e armados de morrões e
roteiros enfrentaram as águas marinheiras ainda povoadas de assombrações. E
tentaram encher a terra de gente, mas ela era muito grande de mais. Portugal
era despovoado. Não tinha o hábito da colonização. E começou a mandar a sobra
da sua gente para a ilha estranha. Como condenada. Porque a terra era longínqua
e o mar encrespado ameaçava...
II
Os anos se passaram e a gente lusa receosa foi se abeirando de um
litoral sem fim e a pouco e pouco foi se estendendo para o centro. E de lado a
lado aquela gente percorria a grande terra sem se aperceber do seu tamanho e o
que significavam tantas extensões, enormes e misteriosas...
O pau vermelho luziu
como numa sugestão de futuras grandezas.
Começa um novo ciclo.
Era a primeira
expressão econômica que surgia.
III
E vendo que nasciadessa nova descoberta uma tentativa de comércio, os
civilizados traficaram, transportando para as estranjas aquela mercadoria. Mas
sem método, sem grande cobiça, os lusos não souberam tirar os proveitos que
poderiam advir desse negócio de tão boas perspectivas.
IV
O Brasil foi descoberto a segunda vez pelos franceses.
V
Foi então quando os iniciados em Dieppe viram e compreenderam. Aquela
terra nova e renegada a uma colonização deficiente era um paraíso de promissão.
E se fizeram ao largo para a cobiça das grandes civilizações.
VI
Os primitivos donos sem se aperceberem do valor e grandeza da terra
pouca importância deram aos novos domínios conquistados. O domínio lusitano não
poderia interessar aos franceses, por isso que era desinteressante e áspero. E
transpor os mares era uma empresa arrojada demais para tentar qualquer comércio
sistemático. E assim os anos dobraram e a colonização francesa tomou caráter
mais sério.
VII
Enquanto Portugal nos enviava os seus colonos, da França vinham até nos
os seus melhores cavalheiros. Era Duguay Trouin. Era um Coligny, o almirante;
Villegaignon, o pensamento protestante...
E das brumas da nova
terra foi surgindo a França Antarctica. La Ravadiére. Claude d'Abeville. Era o
entrechoque de duas civilizações no desesquilíbrio de uma cultura.
VIII
Os franceses advertiam aos lusos a significação do novo país.
E Portugal despertou
numa tentativa sanguinolenta de expulsão.
Os franceses
abandonaram a terra.
Mas o espírito gálico
ficou e se insinuou na alma da nova gente que se estava caldeando.
Dolorosa foi essa
separação. Separação vital, tremenda!
IX
Terminado um ciclo colonial, começou a comunhão do espírito
franco-brasileiro. E o Brasil não poderia separar-se em espírito do claro gênio
dos gauleses. E a nossa história se sucede animada aqui e ali por um vulto de
França. De século para século esse traço se adelgaça. Mas se acentua. Em
profundidade.
Uma explicação
antropofágica desvena um mundo de sugestão.
Oswald de Andrade viu a
revolução Caraíba maior que a revolução francesa. E acrescenta no manifesto
antropofágico que sem nós a velha Europa não teria sequer a sua declaração dos
direitos do homem.
"A unificação de todas
as revoltas eficazes na direção do homem" (Manifesto).
X
A América revelou à Europa o homem simples, o homem natural, integrado
na sua máxima expressão de liberdade.
E aqueles homens
simples mandados do Brasil à corte de França, na coroação do Rei, estranharam
que se dignificasse o homem fraco e mirrado, deixando a seu lado o homem forte
que tudo pode. (História de França). E esse reflexo do homem forte e simples
impressionou o espírito dos filósofos. Montaigne. E o que era uma mera
sugestão, mais tarde se positivou numa campanha reivindicadora. A enciclopédia
refletiu esse espírito. Rousseau não poderia conceber o contrato social sem o exemplo
dado pela simplicidade lógica dos aborígenes. E assim se explica a ligação filosófica
da França eterna ao Brasil novo e misterioso.
O "surrealisme", que um
momento comunicou ao espírito francês a mais intensa vibração, já existia no Caraíba
como num estado latente.
Jayme Adour da Câmara, Revista de Antropofagia, 7 de abril de 1929