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Catão e seus filhos

por Yan Thomas

Publicado originalmente em Autrement, 61, 1984. pp. 80-87.
Tradução de Felipe Vicari de Carli. Revisão de Eduardo Viveiros de Castro.


1

No mundo romano, e na longa duração de sua história narrativa, a figura do pai encarna o poder naquilo que ele tem de primordial. A imagem que temos hoje em dia do pater familias é a de um velho patriarca autoritário. Ela é simplista e anacrônica, porque puramente visual: nós nos representamos a violência física de Padre padrone, um estilo grosseiro de vida, uma comunidade de habitação. Em oposição a essa imagem, os poderes familiares eram, no mundo romano, abstratos, pouco visíveis, unicamente regidos pelo direito. A unidade doméstica se afirmava para além de toda promiscuidade residencial, numa sociedade urbanizada onde, para as classes superiores, que conhecemos melhor, a independência das moradias não impedia em nada a eficácia de um controle que se exercia apesar das distâncias. Estivesse ele a mil léguas, vivendo em uma outra cidade ou em uma outra propriedade, um filho continuava a ser regido por seu pai por tanto tempo quanto este vivesse: assim eram as regras de seu status. Primeiramente, avaliemos toda a dimensão dessa abstração: mais adiante veremos qual era sua eficácia.

Em princípio, o poder do pater famílias consiste em decidir sobre a morte e, consequentemente, sobre a vida. Não há outra definição do pátrio poder[1] senão essa. Esse poder está inscrito na fórmula arcaica do ritual de adoção, declarada ainda no século II de nossa era, evocada até mesmo pelo Código Teodesiano no século V. É tão incômodo, para os humanistas contemporâneos, verem-se confrontados com tais princípios que a maioria desperdiça os tesouros de erudição para separar os costumes do direito e jogar este último no porão das origens fossilizadas. Ora, se existe um domínio em que a problemática das sobrevivências é inaceitável, é justamente o domínio normativo. Não se trata aqui nem de costumes nem de práticas, mas de ameaças virtuais. A força de dissuasão do poder pátrio manteve por séculos uma ordem familiar imóvel em suas hierarquias incontestes. Os casos de filhos mortos pelos pais são raríssimos e têm ligação com a vida política (um cidadão sedicioso é executado em praça pública pelo pai, que ostenta insígnias consulares). Por outro lado, constata-se regularmente sua submissão, salvo em caso de revolta aberta: a lógica de tais reações é então radical e conduz diretamente ao parricídio, transgressão maior e a que muito frequentemente se alude.

Não vejamos nesse direito, que define idealmente a essência de um poder, o menor sinal de  brutalidade efetiva. O velho Catão, modelo de conservadorismo e de rigor, achava vergonhoso que um pai levantasse a mão para o filho. Não o confundamos tampouco com a exposição dos recém-nascidos, que não passa de um modo de controle dos nascimentos. O filho estrangulado ao nascer, privado de alimentação ou jogado à rua não havia ainda entrado na família. O poder de que falo supõe, ao contrário, reconhecimento e integração – o que se dá após o parto: presente ao acontecimento ou representado por outrem, o pai decide reconhecer ou recusar a criança. Se se trata de uma menina, ela é levada ao seio, a fim de que sua primeira alimentação inaugure seu modo orgânico de existência. Somente com o casamento é que a filha, abandonando suas amas e seus brinquedos, completará sua função social. Já o menino é deposto no chão assim que o cordão umbilical é cortado. Seu pai então o ergue nos braços; esse segundo nascimento, do qual ele é o único autor, faz surgir sobre seu filho, e apenas sobre seu filho, um poder definido pelo direito de morte. A partir do rito, o menino entra num mundo regido por normas políticas.

Fundamentalmente, ser pai não significa ser genitor. O segundo nascimento é o único a dar lugar ao título de pater. A fecundação da esposa não basta para produzir este liame: é preciso ainda um ato de vontade. A adoção, visto que conduz a ficção ao seu ápice, é o que melhor revela a essência da paternidade. Por uma transferência de homem a homem, o filho de um se tornará filho de outro. Dessa operação, a mulher está ausente. Nada melhor para mostrar a que ponto a mãe está fora do direito. Ou então um cidadão sem ascendentes, pater familias ele mesmo, se submete com todos os seus ao poder de outrem, em presença do povo que, por uma lei, confirma a passagem de um status a outro: é nesta ocasião que o grande pontífice, que preside a assembleia das cúrias, formula este direito, que consiste em dar a morte e em conservar em vida, “tal como todo pai o tem sobre seu filho”. Deste processo, as mulheres uma vez mais estão ausentes, tanto como adotantes quanto como adotadas. Além disso, as meninas são, de uma maneira geral, adotadas somente no interior de uma família: trata-se de um simples arranjo doméstico. O pai reordena dentro de sua própria casa a ordem das filiações, que ele permuta a seu talante. A verdadeira saída, para uma menina, é o casamento. Para um menino, é a adoção. Nestes contratos de homem a homem, se os meninos são um meio de aliança, a paternidade se revela puro produto da lei.

O poder é o que há de irredutível e de essencial na raiz dessa noção. É justo por isso que se chamam patres os senadores, patricii os patrícios (segundo um processo de derivação que E. Benveniste mostrou ser próprio aos adjetivos formados a partir de nomes de funções oficiais, como “edilício”, “tribunício”, “pretorício”[2]), pater patriae o imperador,e Jupiter o deus que representa a função soberana.

Júpiter preside à investidura dos pais: à “elevação” do filho pelo ministério da deusa Levana[3] – aquela que tem por função a de “elevar”, como nos ensina santo Agostinho. Da mesma forma, Júpiter preside à adoção pública. A se dar crédito a Plínio, o Jovem, Trajano foi adotado por Nerva, seu predecessor no Império, “não em seu quarto de dormir, mas no templo, não em frente ao seu leito nupcial, mas em frente ao leito destinado aos festins (pulvinar) de Júpiter” (Panegírico, VIII, i). A referência ao leito de Júpiter indica não somente que Trajano se tornou filho de Nerva no templo de Júpiter Capitolino: ela me parece ser geral. Essa intervenção divina é provavelmente ainda mais crucial aqui porque o grande Pontífice dirige o processo e porque aquela outra cerimônia, em que tradicionalmente se requisita a assistência da assembleia de cúrias, é também ela realizada sob o signo de Júpiter.

Por uma cerimônia que se assemelha à precedente, os magistrados são investidos de seu comando supremo (Imperium) e obtêm o direito de consultar esse deus. Toda investidura requer portanto a invocação de Júpiter e sua aquiescência: tanto a dos pais de família como a dos magistrados.

Sob esses dois aspectos (paternidade/magistratura), o poder aparece como uma noção primordial e unitária. Além disso, o “leito de Júpiter” em frente ao qual se adota, bem como o solo onde jaz a criança antes de ser erguida sob os cuidados do deus, é um espaço de que por hipótese a mãe está ausente. É do pai, e somente do pai, que a criança nasce segundo o direito. Eis aí por que Júpiter é o garante dessa geração solitária.


2

 O poder não é apenas uma noção refletida por um vocabulário e por ritos de investidura. A relação ela mesma se inscreve numa rede institucional bastante densa. Em Roma, não existe idade legal de maioridade, ao contrário do modelo da cidade grega, e ao contrário da nossa sociedade civil pós-revolucionária. Somente a morte do último ascendente paterno emancipa os filhos da geração seguinte ou os netos que representam um genitor morto. O pátrio poder é portanto vitalício e rege todos aqueles que, mesmo responsáveis por uma descendência numerosa, têm direito apenas ao título de filho. A oposição é de status, pois, senhores exclusivos do patrimônio e únicos detentores de direitos, os pais são uma mediação necessária entre a cidade e seus súditos domésticos: eles os inscrevem sob seu nome no registro do censo, arcam com os custos dos seus deveres cívicos, caucionam sua carreira política. Evidentemente, não é por casualidade que as tensões mais fortes entre pais e filhos nos sejam atestadas na ocasião de tumultos, quando um agitador, subvertendo a ordem familiar sobre a qual o sistema político repousa, oferece aos jovens a saída revolucionária de uma tomada do poder pela violência. A aventura de Catilina em 63 a.C. e os sucessos de César a partir de 49 a.C. devem ser analisados em termos de conflito, não de gerações – pois há filhos de cinquenta anos e sui iuris (cidadãos livres de ascendentes) de vinte –, mas de classes de status que são a projeção política de divisões internas à família. Catilina e César se cercaram de filhos de família cujas dívidas pagaram, e a quem ofereciam presentes e carreiras promissoras. Alguns aproveitaram a ocasião para fazer chantagem sobre os pais, ameaçando aliar-se a certo chefe de partido se eles não obtivessem em casa as satisfações que podiam obter alhures. Catilina planejara incendiar a cidade de Roma e massacrar, em uma noite de longos punhais[4], os pais de cada conjurado: “os filhos de família, dos quais a grande maioria pertencia à nobreza, deviam matar seus pais” (Salústio, Catilina, XLII, 2). Carência de dinheiro, desejo de poderes, parricídio: eis aí um tema batido, tanto durante a República tardia quanto no primeiro século do Império romano. Sob o reinado de Vespasiano, por exemplo, um certo Macedo, coberto de dívidas, havia matado seu pai. O Senado (cujos membros, não se esqueça, chamavam-se de “pais”) tomou a seguinte resolução, que nos chegou integralmente: “Aos motivos que havia para cometer um crime e que provinham de sua natureza malvada, Macedo acrescentou as dívidas. Ora, encontra-se muito frequentemente um credor que, fornecendo às disposições viciosas os meios do delito, empresta dinheiro contra créditos incertos, para não falar do resto (compreenda-se: a créditos que, enquanto o pai estivesse vivo, não poderiam ser reembolsados, donde a alusão ao homicídio). Desde então, fica decidido que será privado de toda ação em juízo e de todo recurso aquele que tiver concedido um empréstimo a um filho de família, e isso até mesmo após a morte do pai que exercera sobre este seu poder. Que aqueles que praticam a usura de acordo com tão execrável exemplo saibam assim que não se pode esperar recuperar seu crédito sobre nenhum filho de família que espera a morte do pai (Digesto, XIV, 6, 1)”. Dezenas de declamações escolares – temas debatidos nas aulas de retórica, em que os jovens se exercitavam na arte da controvérsia – tratam de conflitos entre pais e filhos, de violências domésticas, do medo que os primeiros têm de serem mortos, os segundos de transgredir os limites para além dos quais eles cometeriam o “crime inverossímil”: nessas causas fictícias, os filhos preferem se suicidar ou fugir. Na realidade, são muito poucos os que nos falam de seu pai, a não ser para dizer que lhes devem tudo e que aprenderam tudo deles (por exemplo, Horácio, Sátiras, I, 4, versos 103 e ss.).

O leitor julgará talvez excessivo este retrato e se perguntará se as normas e as atitudes estereotípicas refletem minimamente a realidade. Mas isso seria esquecer que o mundo da cidade, e particularmente o mundo romano, põe no centro de suas preocupações questões de ordem, de conformidade e de poder. Numa sociedade que soube tão bem explicar os princípios que a regem e fazer de sua exegese e de sua classificação uma arte cultivada com talento, não é indiferente que, estando o pai no centro da representação normativa, a questão do pai tenha estado no centro de suas representações. As regras de vida pertencem hoje ao registro exterior e objetivo daquilo que, em virtude de nossa liberdade, nós nos achamos no direito de considerar com distanciamento. No mundo romano, a liberdade está inclusa nas regras e consiste em assumi-las, a tal ponto que cada um experimenta como um dever denunciar noutrem o desrespeito a elas. As convenções psicológicas, numa cultura dominada pela retórica e pelo direito, foram sem dúvida intimamente experimentadas, ou, se se prefere, endossadas com convicção por aqueles cujo status expunha às tensões ligadas à sua posição. É dizer, as normas previam tudo, inclusive seus efeitos perversos. Para além das observações gerais, que eu não posso desenvolver aqui, seria interessante buscar, pelo estudo de caso, um pouco mais de precisão.

Um aspecto da vida cotidiana ao qual temos acesso é a educação, desde a primeira infância a uma adolescência que, na aristocracia, se prolongava até os vinte e cinco anos, requeridos para gerir os encargos públicos. Ora, o que impressiona é o cuidado zeloso, exclusivo, com o qual os pais romanos reservavam para si a aprendizagem física e intelectual de seus filhos. Se a instituição grega da efebia foi por muito tempo atacada em Roma, foi-o menos, como se crê, por causa da pederastia que por ser considerada um modo público, e portanto sem controle, de iniciação. Homens como Catão, o Velho, Cipião Emiliano, Cícero, Horácio, Plínio, o Jovem, Quintiliano e muitos outros estavam convencidos da superioridade de uma educação doméstica e paternal. Catão vigiava a forma de vestir de seu filho, ensinava-lhe ginástica, equitação, gramática e direito. “Ele redigira um livro de história de próprio punho, em grandes caracteres, a fim de que seu filho encontrasse na própria casa onde conhecer as antigas tradições de seu país” (Plutarco, Vida de Catão, XX, 7). Esse ideal autárquico supõe uma presença constante, uma vigilância que pode surpreender numa sociedade onde as relações entre pais e filhos são desprovidas de intimidade, marcadas, pelo contrário, por uma reserva extrema, por um pudor que chega à obsessão quando se trata, notadamente, do corpo (embora caiba ao pai constatar a puberdade do filho). Cícero anuncia secamente o nascimento de seu filho: “Anuncio-te que um filho me é nascido”. Por outro lado, seu correspondente, Ático, é informado dos mais ínfimos detalhes dos progressos intelectuais do meninote e, depois, do adolescente cujo pai leva para todo lugar consigo, ao sabor dos deslocamentos políticos ou das estadias neste ou naquele domínio de sua propriedade. Quando, aos vinte anos de idade, Marcos faz seus estudos em Atenas, ele é literalmente espionado: Cícero se mantém informado de seus feitos e gestos e controla de longe seu orçamento. Ele lhe envia um tratado de moral (Dos Deveres), com a insistente recomendação de ler todas as suas obras. Pompeu, o Grande, fora educado de acordo com a “vida de seu pai”. O imperador Augusto encontrava tempo para ensinar a leitura e a escrita a seus netos. Horácio foi a Roma acompanhado do pai, que o seguia pessoalmente até a casa de seus mestres de escola. Mais tarde, Quintiliano conceberá suas Instituições Oratórias como uma herança destinada a seus filhos: se ele viesse a desaparecer, observa, eles continuariam a tê-lo como preceptor, para além da morte. Na época de Trajano, Plínio o Jovem definiu claramente esse ideal: “Cada um tinha seu pai por mestre, ou, se não tivesse pai, a pessoa de maior consideração e idade suscetível de ocupar seu lugar (Epístolas, VIII, 14, 4)”. Falando do passado, ele parece nostálgico de um tempo que se fora. Porém, em outra ocasião, nós o vemos se encarregar da escolha de um preceptor para os sobrinhos de um de seus correspondentes e da recomendação de um orador para o neto de um amigo. É que a pedagogia paterna podia recorrer a intermediários: o tio paterno, primeiramente (como Cícero para seu sobrinho Quinto), ou um velho amigo de família caso necessário. O patruus está presente em todo lugar como um duplo do pai (sua severidade, seu caráter desmancha-prazeres são um topos da literatura latina), e o amigo como seu substituto. Numa sociedade onde a introdução do pedagogo e a abertura de escolas de retórica testemunham o triunfo da helenização, os meios de controle tradicionais, longe de terem desaparecido, souberam perfeitamente se adaptar a essas novidades. Contemporâneo de Plínio, Plutarco redigirá um tratado sobre a educação das crianças. O ideal romano está aí codificado. Desde a escolha de uma boa esposa para produzir uma boa descendência, passando pelo controle do pedagogo e a inspeção quanto aos progressos físicos, oratórios e filosóficos do filho, até a vigilância necessária em matéria de sexualidade, a canalização dos ardores juvenis (que arriscam, antes de mais nada, comprometer uma matrona, expor-se aos riscos do adultério) e finalmente a decisão de um casamento que porá um freio nesses excessos. Plutarco segue passo a passo muito menos o filho que o pai, encarregado de encarnar um exemplo e de reproduzir um duplo à sua imagem. Seria um erro crer que a exemplaridade não passa de um motivo ideológico. Ela é um modo de transmissão dos valores de pai para filho, numa sociedade onde a família é, muito mais que uma célula de reprodução, o arquétipo mesmo da ordem social, e o pai a via de passagem obrigatória em direção à Cidade. Num sentido, as normas eram tão restritivas para ele quanto para a sua descendência.


3

Teríamos algum meio de nos aproximar dos sentimentos, da interioridade afetiva? Nem o direito, nem a retórica, nem mesmo a poesia o permitem: seguramente, sequer o fazem os anais e menos ainda as biografias, que obedecem a estereótipos. Deixemos de lado as frases feitas da epigrafia funerária. No mundo romano, tudo é convenção: tudo, pelo menos, o que os romanos nos deixaram sobre eles. A questão agora se estreita: quais são os modos convencionais de expressão do sentimento filial e do sentimento paternal?

Os filhos, já o disse, falam pouco de seu pai: eles não aludem a quase nada além da educação perfeita que deles receberam (por exemplo, Cícero e Horácio). Nos exemplos analísticos e escolares, um filho suporta tudo de seu pai, mesmo se dele sofreu os piores tratamentos. De revoltas, pouco se vê o rastro, senão nos casos das agitações revolucionárias ou das guerras civis da República tardia (os filhinhos de papai dão então livre curso ao que se deve chamar de desejo de revanche); ou quando o despotismo imperial acolhe todas as delações donde quer que venham: escravos e filhos aproveitam então a ocasião, mas muito raramente para que os exemplos que nos restaram tenham feito escândalo.

Os pais são menos reticentes para deixar vir à tona seus sentimentos. Quando eles não nos entretêm com os estudos de seus filhos e as preocupações que isso lhes dá, é à infelicidade da morte destes que nós devemos algumas confidências. No entanto, era indecente deixar extravasar sua dor nessa circunstância: o heroísmo era de rigor, e o pesar, medido pelos grandes esforços para o superar, era um meio de fazer valer a que ponto, quando perdia seu filho, um pai encarnava bem o seu papel. Ele dava imperturbavelmente continuidade a suas tarefas públicas, aplicava-se a suas ocupações cotidianas, não mudava nada de seu ritmo de vida. Os lutos exagerados eram suspeitos (Plínio nos fala das lágrimas hipócritas de um pai que esperava receber a herança da mãe de seu filho) ou femininos (tema abundantemente desenvolvido nas Consolações; após a morte de seu filho, Camilo se fechou no quarto das mulheres, para aí esconder seus prantos).

Em 45, Cícero perde sua filha Túlia, morta ao dar à luz. Ele se preocupa logo em seguida em erguer um templo à defunta, num lugar suficientemente frequentado para que a apoteose de sua filha lembre à posteridade que Cícero cumpriu seu dever mais que o necessário. De início, este monumento é uma “dívida”, e quitá-la o mais rápido possível é o primeiro alívio que ele se promete (Epístolas a Ático, XII, 38). Seria anacrônico analisar essa dívida como uma resposta econômica aos sofrimento: Cícero não substitui a seu infortúnio o fetiche de uma obrigação que o distraísse. Em verdade, ele se informou sistematicamente, nas obras especializadas, sobre o que em tais circunstâncias era conveniente fazer. Dos tratados de consolação que leu, Cícero guardou essa ideia do templo, que lisonjeia sua vaidade: donde o voto que ele faz, e inspirado por um manual de boa conduta (Ático, XII, 18, primeira parte). Paralelamente ao templo, de cujas circunstâncias financeiras ele não esconde nada, Cícero responde ao evento também pela literatura: “Compus a meu próprio respeito cartas de consolação”. Não duvidemos um só instante de seu sofrimento, mas menos ainda do cuidado com sua reputação de coragem, de que ele fazia questão para o julgamento de seus contemporâneos: “Que aqueles que me creem arruinado e enfraquecido saibam o que escrevo, a que gênero literário me dedico... Verão que não há nada a me repreender se eu tenho o espírito leve o suficiente para o consagrar, livre de toda preocupação, à escrita de assuntos tão difíceis; julgarão se não é mais adequado me louvar por ter escolhido para minha dor uma diversão que não pode ser mais honrosa e mais digna de um erudito (Ático, XII, 38)”. Que se tratasse da opinião pública, e exclusivamente disso, é o que nos fica confirmado pela resposta que ele fez a uma carta de consolação de Servius Sulpicius: seu infortúnio é incomparavelmente maior que aquele dos pais exemplares que, após terem perdido seu filho, não deixam transparecer nada de sua dor, tão ocupados que estavam de seus encargos políticos. O homem de Estado, neles, sublimava a paternidade dilacerada. Ora, para Cícero, não há mais, infelizmente, afazeres públicos sobre que  desenvolver o domínio de si, pois César é ditador: o Fórum e o Senado são agora lugares vazios de poder e de palavra. A República está morta. Incomparável é agora o infortúnio ao qual a Cidade não oferece nada em troca. Incomparável, por consequência, essa força da alma que, não podendo dar-se a ver no teatro do Estado, se consome na cultura dos gêneros literários (Cartas familiares, IV, 6).

Essas palavras são de ouro. Elas revelam um tipo de sinceridade que, por não ser mais a nossa, não é por isso menos autêntica. O pior infortúnio, para um aristocrata romano, é o de ser inútil à sua cidade, ou de não ser mais reconhecido por ela. Um filho, porque perpetua seu nome, uma filha, porque lhe concede um genro, ajudam na realização cívica do pai: eles são um prolongamento político dele, e exigem ainda mais deveres e cuidados quando se deseja deixar de si um exemplo inalterável. Um pai ama seus filhos na medida em que ele se considera digno de representar aquilo que a cidade oferece de melhor. O amor do filho é um amor político, porque a família, em Roma, abre amplamente suas portas à cidade, e porque o pai é seu senhor.


4

Mitologia do pai fundador e do pai como único doador de vida, concessor da lei, transmissor da herança e do nome legítimo: chegado a este ponto, o historiador de Roma, que é um historiador de sua longuíssima duração normativa, cede lugar a todas as interpretações que preferem não estender essa estrutura ao longo do fio de uma história indolentemente repetitiva, limitada, em cada etapa de um longo percurso, a descrever a evolução de dados fundamentalmente imóveis. Para o romanista, o verdadeiro horizonte de ruptura é Locke, que se bate, em nome da propriedade de si mesmo, contra o poder pátrio e polemiza com o tradicionalista Firmer a respeito da metáfora, que o primeiro considera contra a natureza, de uma monarquia paternal; é o Emílio de Jean-Jacques Rousseau; é o artigo “Criança” da Enciclopédia (“O pai não é senhor da criança por mais tempo do que o seu discurso lhe seja necessário; além deste termo, eles se tornam iguais, e então o filho, perfeitamente independente do pai, não lhe deve senão respeito, e não obediência”); é o protesto revolucionário de Mirabeau, encarcerado até a idade de trinta e dois anos sob lettres de cachet[5] requeridas por seu pai; é o artigo primeiro do relatório que Berlier apresenta à Convenção em fevereiro de 1793, alguns dias após o assassinato do rei: “O pátrio poder está abolido”. Vista de Roma, a história dessa dupla destituição é a única que tem um sentido.



[1] Nota do tradutor: Puissance paternelle: tradução para o francês da fórmula latina patria potestas, que no direito brasileiro resultaria no extinto pátrio poder.. [Voltar ao texto]

[2] N.T.: Não existe em português a palavra “pretorício”, para traduzir o “pretoricien” do original e manter o paralelo com a sufixação referente a “patrícien”/”patrício”. Entretanto, a palavra francesa, juntamente com “édilicien”, tampouco é registrada pelo Dicionário Robert. Além disso, a palavra “tribunicien” é registrada como “tribunitien”. Conclui-se assim que o autor, apoiado em Benveniste, ou valeu-se de sufixação antiga ou trouxe para o francês o mesmo paralelismo de sufixações presentes no latim, a fim de ilustrar o argumento. Daí a tradução para o inexistente “pretorício” em português. [Voltar ao texto]

[3] N.T.: Deusa cujo nome provém do verbo latino levo (que se encontra também na raiz de elevação, ou de relèvement, no original), e que “protegia os recém-nascidos quando se os levantava do chão”, de acordo com o Grand dictionaire de la langue latine, de Wilhelm Freund (Firmin Didot frères, fils et cie.: Paris, 1862; tome deuxième, p. 337). [Voltar ao texto]

[4] N.T.: Referência ao expurgo em suas próprias fileiras promovido pelo Partido Nazista na noite entre 30 de junho e 1º de julho de 1934. [Voltar ao texto]

[5] N.T.: Espécie de “cumpra-se” real do Ancien Régime francês, destinado no mais das vezes à prisão de alguém sem julgamento. [Voltar ao texto]


Próximos textos:

Notas para a reconstrução de um mundo perdido
(XX): O Homem-Árvore


Notas para a reconstrução de um mundo perdido
(XXI): O Espelho do Homem


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.