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XXI - OS GATOS DE ROMA
O Espelho do Homem

A floresta foi o grande espelho do homem do Começo. A Floresta foi o cenário do Soluço e do ritmo da Marcha Hesitante. Foi o espelho da primeira Visão Geográfica e a fonte maravilhosa da Quimera. A floresta deu ao homem a sua maior força vital, o Narcisismo. É na floresta que o homem descobre seu valor. No começo ele imitava a árvore para sobreviver e se integrava no ritmo da própria floresta. A imagem da árvore no cérebro do homem se encontra antes da imagem do homem. É só muito mais tarde que o homem se preocupou com a sua própria imagem e esta descoberta da sua própria imagem é de rara importância para garantir a sua sobrevivência e a formação de seus sentimentos mais delicados e se encontra localizada após o advento do Homem-árvore. Constitui a descoberta o início do Narcisismo e do Ritmo e o importante início do amor que o homem tem por si mesmo que é o início da sua segurança. O abandono da imagem Homem-árvore no cérebro do homem, e a substituição pela própria imagem do homem recém-descoberta, marca também o início da sua personalidade e da criação da idéia de indivíduo. Esse abandono só se dá de uma maneira total, com o abandono da floresta e com a focalização mais precisa da imagem do homem exposta à claridade fora da floresta.  

O processo de compreensão está diretamente ligado ao aparecimento da verdadeira imagem do homem. Antes desse aparecimento havia uma situação de disfarce e de fraude; a imagem do Homem-árvore ocultava, não somente para as feras, mas também para o próprio homem, o desabrochar dos desejos e a formação da idéia de indivíduo.

A compreensão do primitivo pelo uso da sua inteligência inarticulada só passa a existir quando o homem defronta o seu semelhante, só existe em virtude de um gregarismo e por conseguinte de uma situação de luta.

O afastamento do semelhante traz um obscurecimento da inteligência inarticulada da mesma maneira como se processa o obscurecimento de uma imagem que se afasta do espelho e esse afastamento impede o maravilhoso teatro da pantomima.

O afastamento destrói o Espelho do Homem e diminui o seu narcisismo. O homem gregário é o homem narcisista.

O efeito de apagar a pantomima produzido pelo afastamento conduz rumo a esquizofrenia e rumo às forças vitais do passado, e afasta o homem das noções de Cultura. O espelho reproduzindo a imagem do homem se torna deste modo o mais importante objeto de cultura e de aperfeiçoamento.

Os gestos dos membros do corpo são repetidos pelo adversário como precaução de defesa. O grito do começo que tanto pavor provocava e cujo pavor ainda se encontra no homem de hoje e as diversas vocalizações eram repetidas pelo adversário como meio de defesa e a fim de provocar o mesmo pavor.

O Grito, o Soluço, o Riso, o Choro, aparecem primeiro e são repetidos em eco pelo semelhante do homem como defesa contra a simulação.

O momento fraco na evolução das vocalizações é o período do choro, que, aparecendo após a agressividade do Soluço e do Grito, representa um momento de grande perigo e de grande fraqueza para o indivíduo, como também é para a criança.

As lágrimas aparecem no pranto impostas pela necessidade a fim de melhor ver e com o intuito de limpar o globo ocular. O recém-nascido grita apenas, ao sair do claustro materno, e o seu grito é sem derrame de lágrimas pois ele é cego e não necessita melhor ver. O grito a seco encontrado no recém-nascido seria no homem a sua manifestação sonora mais antiga e mesmo como sucede na criança seria anterior ao grito com lágrimas e ao pranto sem grito que se segue.

O pranto é uma manifestação de Defesa Passiva, característica do interior da floresta, momento de fome, de aflição e de aperto e que como acontece com a criança, é repetido pelo semelhante em virtude de um embalo, de um mecanismo de imitação. Esse clímax pode ser taxado de um período de paz entre o homem e o seu semelhante, momento em que a supercarga emotiva, lentamente acumulada pelos movimentos e as vocalizações imitadas é descarregada de um só golpe. É idêntico ao pranto da criança que tem fome.

A repetição e o ritmo criam um jogo de espelhos imaginários na frente do repetidor, dando a toda ação uma feição narcisística. A mímica se processa como a mímica de um ator repetindo diante de um espelho. O ritmo é pois um fixador de narcisismo e de apreciação de si mesmo para fins de auto-defesa. O ritmo deve ter nascido como uma primeira Defesa Agressiva contra a tristeza logo no começo das coisas suscetíveis de experimentar tristeza.

A memória sendo uma conseqüência do ritmo é pois uma manifestação de narcisismo e de auto-apreciação.

Analisando o conteúdo da memória observa-se de fato que ele é composto somente de manifestações de auto-apreciação. O homem se lembra daquilo que não conseguiu realizar, daquilo que permaneceu angustioso e que afetou o seu valor e a sua apreciação pessoal. Aquilo que o apreciou ou o depreciou. O homem se lembra daquilo que foi repetido muitas vezes e que continua sendo repetido sem nunca ser realizado. 


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 9 de junho de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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Notas para a reconstrução de um mundo perdido
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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.