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XXII - OS GATOS DE ROMA
A Imagem no Espelho

A descoberta da imagem do homem pelo homem marca o início do período de Defesa Agressiva, o pronunciamento rítmico e insistente do primeiro Não, como também marca o início da linguagem articulada e o fim da Defesa Passiva de natureza tipicamente esquizofrênica.

Foi o abandono da Defesa Passiva e da esquizofrenia correlata que permitiu o advento e o desabrochar da Pantomima. A Pantomima persistente e imitativa, funcionando como um espelho conduzia o homem rumo à cultura.
Os movimentos e as imagens básicas pertencentes ao período de Defesa Passiva se repetem durante o período posterior de Defesa Agressiva, conquanto as emoções dominantes sejam aparentemente diferentes.

O período de Defesa Passiva apresenta o Medo com a mesma forma dinâmica com que o período de Defesa Agressiva apresenta o Ódio ou a Raiva.

A Defesa Passiva funciona como sendo o espelho filogenético da Defesa Agressiva. A imagem dinâmica de um homem fugindo, tanto de costas como de frente ou de lado, é a mesma imagem de um homem atacando o seu semelhante. Apenas o ponto estimulante muda de posição sendo colocada atrás do fugitivo ou na frente do atacante. O ponto estimulante é o espelho.

O movimento das pernas na corrida da fuga ou no avanço do ataque são os mesmos. Os braços levantados e dobrados no cotovelo se apresentam iguais nas duas imagens do Medo e do Ódio. A expressão de pavor e de medo do fugitivo é igual em todos os seus detalhes à expressão de pavor e de medo do fugitivo é igual em todos os seus detalhes à expressão de ódio do atacante. Há uma contração geral da superfície do corpo e dos músculos tanto do homem com medo quanto no homem com ódio. Ambos retêm a respiração, tremem, fecham os olhos, apertam os lábios, gritam com violência, formam garras com os dedos da mão. As duas personalidades, a do fugitivo e a do atacante, se assemelham na mímica em todos os pontos. Mesmo o ato final da fuga é idêntico ao ato final do ataque; o fugitivo no fim da sua fuga encolhe-se em posição intra-uterina e o atacante ao exterminar a sua vítima até o fim, adora a mesma posição encolhida e agachada.

É possível que algum sentimento de amor já existisse durante o período esquizofrênico de Defesa Passiva porém o autor acredita que o sentimento do amor faz parte da manifestação de ódio e se desenvolve em sua plenitude durante o período de Defesa Agressiva e como consequência e Grande Finale do sentimento de Ódio que caracteriza esse período.

Observa-se contudo que tanto após o Medo como após o Ódio o homem exibe os mesmos movimentos que representam a emoção amorosa após ou antes do ato sexual e que são: relaxamento muscular, extensão dos braços e dedos, movimentos rítmicos e leves sobre as zonas erógenas e contato suave. Portanto as fases posteriores ao Medo e ao Ódio se identificam uma com a outra como sendo uma só fase amorosa. As relações existentes entre o medo e o amor são as mesmas existentes entre o ódio e o amor. Prat experimentando sobre crianças recém-nascidas com estímulos de fome, medo e ódio, obteve reações sonoras iguais para todos esses estímulos o que nos leva a marcar mais a identidade dinâmica entre o medo e o ódio e a reforçar a idéia de que a criança reproduz no seu comportamento, o comportamento do homem no começo. Os sintomas da dor, retenção da respiração, olhos e lábios cerrados, dedos da mão em forma de garras, gritos violentos, são os mesmos sintomas encontrados no ódio e no medo. A dor – considerada por certos como não-existente – dinamicamente se confunde com o ódio e com o medo. As imagens-expressões provocadas pela dor são as mesmas provocadas pelo ódio e pelo medo. A dor é por conseguinte tanto o estado anterior como o estado posterior ao relaxamento muscular amoroso com massagens rítmicas sobre as zonas erógenas. Em 1896 Angelo Mosso observava que a máscara expressiva do gozo voluptuoso que acende e produz a vida é a mesma máscara da dor que apaga o fogo da vida e se confunde com esta. A observação de Angelo Mosso marca mais ainda a identidade existente entre o Ódio e o Medo pois associando o gozo ao ódio, indiretamente ele o associa também ao Medo que possui a mesma morfologia dinâmica do Ódio. O Medo, sucedido pelo Ódio nas tapas evolutivas do homem, tem sempre a mesma expressão e a mesma motilidade do Ódio. Ódio e Medo são ambos manifestações de dor e de amor, são eles idênticos em aspecto e as expressões funcionam como sendo uma a imagem refletida da outra. O período de Defesa Passiva é o espelho do período de Defesa Agressiva embora possa haver divergência nos seus conteúdos. Antes do período de Defesa Agressiva não havia Descoberta da Imagem e por conseguinte não havia efeito de espelho. A imagem do homem escondida dentro da esquizofrenia que marcava a Defesa Passiva não procurava se materializar num semelhante ou no seu adversário. A Descoberta da Imagem ter-se-ia dado quando o seu vocabulário inarticulado consistia apenas de alguns fonemas e quando ele começava a realizar que ele é diferente dos outros animais. Antes da Descoberta da Imagem ele não sabia da sua parecencia com o seu semelhante e essa importante ignorância é comprovada pelos fatos observados e colhidos na etnografia e no folclore e os quais indicam que o primitivo remoto não sabia que ele tomava parte na confecção do filho da sua companheira. Não sabia que o filho era seu e em épocas anteriores não sabia que o filho possuía características idênticas as suas. Antes da Descoberta da Imagem o seu semelhante seria um igual ao resto do mundo animal e jamais funcionava como um Semelhante. A Descoberta da Imagem do Homem marca o início dos fenômenos de repetição e de imitação que o conduziram a se diferenciar do resto do mundo animal e a se considerar um ser superior.   

Errata: No fim do art. XVII deve-se ler “... provavelmente uma atitude de Defesa Passiva...”


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 16 de junho de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.