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XXIII - OS GATOS DE ROMA
A Pantomima e o Espelho

Somente os movimentos de Defesa Passiva originados com o advento do primeiro Soluço e com o abandono do Bailado do Silêncio poderiam fornecer a base dinâmica da Pantomima. São movimentos que estão ligados à descoberta da sua imagem pelo próprio homem, descoberta esta, que só se opera após o abandono das imagens do homem disfarçado em árvore ou disfarçado em animal.

Os movimentos da descoberta, elaborados pelo descobridor, só podem reproduzir a própria imagem da descoberta. Desde que há uma transição entre um período de Defesa Passiva (Medo) e um de Defesa Agressiva (Ódio), evidentemente que os movimentos de um e de outro, embora sendo os mesmos como já foi demonstrado, alcançam metas diversas; sendo o Medo uma retração do mundo e o Ódio um desejo de contato com o mundo.

Os movimentos dessa pantomima de começo e de descoberta da imagem verdadeira do homem, se elaboram como repetições de imagens refletidas no espelho.


Descobrindo a existência de um semelhante, o homem, em auto-defesa, adota precisamente os mesmos gestos do semelhante; é uma imitação que o conserva em nível igual ao semelhante impedindo que se opere um estado de inferioridade na sua pessoa. Esta relação dinâmica entre o homem e a sua imagem ou o seu semelhante, iniciada nos primórdios da Defesa Agressiva se processa até nossos dias entre indivíduos, grupos e nações.

No período esquizofrênico de Defesa Passiva que é por excelência o período de disfarce do homem, o homem visualizava somente a imagem e os gestos do animal e da arvore e a sua mímica era a mímica do homem-vegetal e do homem-animal.

O período que se estende entre o início da Defesa Agressiva (um e meio milhões de anos atrás, que é o início da linguagem articulada) até o momento em que o homem começa a riscar pictografos (momento este dificilmente determinável), corresponde ontogenicamente ao período situado entre as idades do homem que vai de dois à seis anos, esta última é a idade escolar. A criança entre dois e seis anos é um retentor e um expositor da Pantomima; quase tudo quanto a criança aprende é por imitação. Filogeneticamente os homens de hoje se encontram ainda em idade escolar e com um nível mental da criança de seis anos.

Observamos que o primeiro período ontogênico do homem, entre a idade zero e dois anos corresponderia filogeneticamente à Defesa Passiva e é o de maior extensão cronológica. Neste importante período o homem desenvolveu o desenho, o canto e o bailado. O homem desenhou, cantou e bailou antes das atividades articuladas, isto é, antes da escrita, antes da linguagem articulada e antes de aprender a andar. A Descoberta da Imagem no início do período de Defesa Agressiva marca o início das três importantes atividades articuladas: a escrita, a palavra e a marcha.

A importante Pantomima, conseqüente da Descoberta da Imagem, é um período de transição que precede a escrita, a palavra e a marcha. Os primeiros desenhos que forçosamente foram executados em pleno período de Defesa Passiva são os primeiros indícios de uma futura escrita executada com pictógrafos, ideografos e hieróglifos.

Os primeiros cantos-sons prolongados e jogados no espaço, sem ritmo, são os primeiros indícios da futura palavra articulada. Os primeiros movimentos vegetativos circulares do Bailado do Silêncio são os primeiros indícios da necessidade da marcha articulada rumo à Visão Geográfica.

Logo cedo o homem teve necessidade de representar e memorizar acontecimentos por meio de atitudes e poses obtidas na execução da Pantomima que se exprimia nas danças de guerra, na mímica animal e nos ritos de sacrifício. O ballet atual composto de pantomima é igual ao pantomimus romano que usava mascara; a máscara expressando a pose ou a atitude estática.

A Pantomima criava a atitude-monumento e a pose-estátua, fáceis de serem memorizadas. A gesticulação da Pantomima apontava para a criação do monumento que tem a mesma função prolongadora e a longo alcance que viria ter a escrita.

Alain intuitivamente menciona essa função do monumento.

Esta necessidade imprescindível de memorizar acontecimentos – nascida com a Descoberta da Imagem – e de conservar a memória da própria imagem, surgiu a fim de permitir ao homem a repetição da Pantomima que se daria em frente ao boneco representando a Imagem. A Pantomima conduziu o homem rumo aquilo que se convencionou chamar arte primitiva e que deu origem a escrita.

As bengalas com nós (protótipo do lenço com nós), o Quipus do antigo peruano (bengalas com nós e cordas coloridas), o cinto enfeitado com contas do índio norte-americano, os rosários nascidos do desejo de castigar, os dolmens, os menhirs, os círculos de pedra etc. enfim toda a sobrevivência antropomórfica e mnê[mica] são as primeiras imagens-ídolos monumentos criados para perpetuar e memorizar a Pantomima e foram eles que deram origem à primeira manifestação de escrita, isto é, pictografos (imagens-pantomimas), ideografos (imagens-ideias) e hierogrifos.

São os primeiros monumentos do homem que deram origem a escrita. Muitos são os fatos encontrados na etnografia e que apontam para esta origem singular da escrita, da palavra e da marcha. Os gregos indicavam as palavras desenho e escrita com o mesmo nome, fato este que aponta para uma ligação antiga entre os dois.

A Pantomima, sucessora dos primeiros bailados do homem e das suas primeiras acrobacias e cristalizada na Descoberta da Imagem, deu origem ao primeiro ator. O bailado-ator necessitava para o seu aperfeiçoamento de um sistema gráfico ou monumental para relembrá-lo dos grandes feitos plasmados pela Pantomima.

Os bonecos eram as primeiras representações do ator ou Bailarino pré-histórico exercitando a pantomima.

O bailarino e o ator, isto é, os donos e exibidores da Pantomima, eram os deuses e os chefes do começo que freqüentemente se apresentavam em estado de transe ou em estado de bebedeira. Uma sobrevivência ainda encontrada na China, quando na data do aniversário de Buddha, 8 de abril, um boneco identificado como Daruma budista e representando um ator em estado de bebedeira, é colocado sobre um altar e adorado.

Os primeiros bonecos e ídolos são efetivamente os primeiros monumentos representando atores que eram soberanos e heróis e estes sobrevivem ainda hoje no boneco do Daruma budista. Não há distinção entre o ator e o bailarino na mais remota antiguidade e no Japão de hoje existe uma escola de pensamento que acha que todo o bom ator deve ser também bom bailarino.

Na Índia, o músico, o bailarino e o ator, considerados elementos que exercem atividades estéticas de natureza primitiva e histérica, são todos classificados como pertencendo a uma única baixa hierarquia. Não nos esqueçamos no entanto; há vestígios de que os heróis e os soberanos primitivos seriam com freqüência extraídos do fenômeno Homem em Farrapos (ver a minha obra a sair A Dialética da Moda).


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 23 de junho de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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O homem em farrapos:
a moda e o novo em Flávio de Carvalho


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(XXII): A Imagem no Espelho


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.