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XVII - OS GATOS DE ROMA
Ritmo e Memória

A memória é espelho filogenético do homem. A floresta deu ao homem o ritmo. A repetição ao infinito da imagem da árvore na floresta teria imposto ao homem a necessidade de absorver esse ritmo ou, por um processo de vibração, teria despertado um desejo rítmico antigo. A memória insistente é uma multiplicação de imagens como a produzida por um jogo de espelhos. A memória é um fenômeno rítmico. O homem recém-descido da árvore, mergulhado no tenebroso e ondulante Bailado do Silêncio, teria proferido o primeiro Soluço após a percepção visual da repetição rítmica dos troncos das árvores. As árvores não eram mais apreciadas tatilmente, mas sim visualmente, pois os homens não subiam mais nas árvores.

A função da floresta era a de despertar no homem as mais antigas noções de ritmo. A Reversão é um fenômeno de memória e de ritmo. A Regressão psicológica se identifica com a Reversão e é também um fenômeno de memória e de ritmo. O reaparecimento periódico de ritmos é observado no fenômeno de Reversão. As listas das zebras que reaparecem de quando em quando nos muares, após milhares de gerações desaparecidas, são manifestações de um arranjo rítmico, são memórias da espécie que ressurgem em virtude da força estereotipada do arranjo rítmico. Tanto as listas da zebra como as pintas da onça possuem um desenho rítmico que exige esse reaparecimento num descendente remoto por ser o ritmo um processo de fixação. Portanto, o problema da reversão torna-se um problema ligado ao ritmo do desenho, das cores e dos volumes do Começo e está naturalmente ligado ao primeiro “habitat” do homem, a floresta.

A memória é a exteriorização de um ritmo que, pela sua natureza de repetição infinita e sem alteração e, portanto, sem sinais de terminar, torna-se angustioso. É a memória do não-acabado daquilo que havia sido tão desejado e que não fora realizado. Quanto mais rítmica é a manifestação mais facilmente se transformará em Memória e menos resistência encontrará para o seu reaparecimento sucessivo.

O mesmo mecanismo que provoca uma Reversão ou uma Regressão, ou um ritmo de memória, provoca também o seu desaparecimento.

A Reversão e a Regressão processam-se pela presença do reagente inalterável ou catalítico que são as forças afetivas e as imagens associativas. É o efeito do choque visual ou emocional que provoca o aparecimento ou o desaparecimento da Reversão e da Regressão, ambos manifestações rítmicas de Memória. É o choque de uma mudança brusca de ambiente ou um choque emocional experimentado por um personagem, freqüentemente o esquizotímico, que viaja pela vida quase intocado pelo mundo exterior. É o mesmo choque que provoca o desaparecimento de uma crise histérica obtusa pela aplicação da dor desmoralizadora de uma tapa no rosto, de um assobio estridente, de uma ordem brusca.

A manifestação histérica é uma forma de memória rítmica, uma reversão a um passado antigo e quando a ocorrência se apresenta também rítmica e conseqüentemente obtusa aparece e desaparece pela aplicação da violência do choque.

O crime é uma manifestação de memória cuja forma dinâmica é uma reversão a um substratum criminoso antigo, comum a todos, e que aparece na tona da consciência, involuntariamente, como um movimento reflexo e com toda a violência característica desse movimento. A formação estrutural do crime deve ser rítmica pela persistência com que ele aparece quando movimentado pelo abalo emocional.

O movimento reflexo seria a memória involuntária. A memória forma toda a vida consciente do homem, o que equivale a dizer que toda a vida consciente é constituída de movimentos reflexos condicionados em alguma época. A mecânica da memória é uma exteriorização de um ritmo antigo ou atual, tornado reflexo e cujo aparecimento quando persistente, estorva e impede a formação de novas idéias, obstruindo o mundo do homem. De qualquer modo, a memória exige um reagente afetivo para o seu aparecimento, uma associação angustiosa.

Uma das manifestações mais importantes e mais antigas da vida é encontrada nas primeiras vocalizações do homem. O Sim e o Não, pronunciados hoje pelo homem, são manifestações involuntárias pertencentes ao início da formação do homem. As vocalizações básicas da concordância ou do Sim são sons prolongados de satisfação, com repetição das sílabas sem interrupções e intervalos e se encontram antes do Não de maneira idêntica como o canto se encontra antes do som articulado e falado. O canto deve ser considerado como uma manifestação da aquiescência e aprovação do mundo. Cantar era estar de acordo com tudo. A serenata amorosa é uma demonstração disso.

A vocalização “Ah-ah-ah”, prolongada e sem intervalos é uma manifestação primitiva do Sim enquanto que a vocalização do “Uh-uh-uh-uh”, entrecortada por intervalos, é uma primeira manifestação do Não.

Os primeiros cantos do homem se encontrariam antes do primeiro Soluço, e o Soluço com a sua interrupção sonora seria a primeira manifestação do Não proferido pelo homem. O não forçosamente surge após o Sim e como manifestação de tática defensiva. O primeiro Soluço e o primeiro Não são o início da linguagem articulada. A linguagem articulada é a vocalização dirigida rumo à cultura mesmo, como a Marcha Hesitante, um produto do Soluço, é o movimento dirigido rumo à Visão Geográfica. O Sim e o Não são problemas de memória ancestral. A aquiescência e o negativismo são momentos de coordenação ancestral, momentos que foram estereotipados no passado antigo e que reaparecem excitados pela sugestibilidade das coisas.

O Não ou o Sim obtuso, insistente e repetido, tão comum no histérico, na criança, no alienado e no primitivo deve ser considerado como uma manifestação antiga e primitiva de histerismo algo do começo, algo básico na vida, provavelmente uma atitude de Defesa Passiva como presenciamos hoje com o Não, obtuso e insistente, do ditador Nasser, do Egito. O Não e o Sim repetidos e insistentes são manifestações rítmicas da vida e por esse motivo pertencem aos fundamentos da Memória. O Não e o Sim, obtuso e repetido, são um movimento reflexo. O Não obtuso e o Sim obtuso recusam uma solução intermediária. São manifestações bruscas e brutais de golpe proveniente de camada filogênica inferior e que se associam às manifestações do histérico, da criança e do primitivo e têm a morfologia violenta e explosiva do movimento reflexo.


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 12 de maio de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.