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XVI - OS GATOS DE ROMA
O Crime, a Floresta e a Memória da Espécie

Voltar à floresta é um convite ao Crime. O momento antigo reproduz o ambiente do homem antigo. Esta reprodução de um ambiente e de uma paisagem é o suficiente para provocar o desejo e a execução do Crime. O Crime é um fenômeno de Reversão. A Reversão ao “modus vivendi” esquecido, provocada pelo aparecimento súbito da paisagem antiga, é um fenômeno que se processa mecanicamente como se processa a memória. A reversão é pois um fenômeno de memória da Espécie que aparece no momento em que é reproduzida de maneira brusca, a paisagem antiga.

A memória da espécie torna-se assim o fato dinâmico do Crime atual. Sem a memória da espécie não pode haver Crime porque não há identificação de condições adversas, porque não há Reversão e o homem sem memória está alheio ao Crime que existe só como condição fundamental do passado. A Memória da Espécie coloca o homem face a face com o seu mundo do Crime, situado no Começo.


Desta maneira, o Crime torna-se uma reprodução de caracteres de há muitos perdidos e aparece na consciência do homem moderno de maneira semelhante como os carateres antigos e perdidos se reproduzem no elemento jovem de cada geração. Aqui temos o elemento jovem apontando de novo para uma vida antiga. O Crime aparece na consciência do homem moderno com os fenômenos de reversão aparecem nos animais. O Crime do homem moderno são pequenas amostras da vida toda de crime do homem antigo.

As listas da zebra, observadas nas pernas dos cavalos, mulas e asnos – após milhares de gerações sem listas – constituem uma reversão Idêntica à Reversão do Crime. Os animais domesticados quando submetidos a uma brusca mudança de paisagem, passando da paisagem doméstica para a paisagem da selvagem da floresta se tornam “criminosos” e selvagens. A paisagem bruscamente revelada incita o animal ao crime antigo. Um cachorro e um gato situados no interior doméstico e cultivando, um pelo outro, uma amizade polida e circunspecta, quando se atiram bruscamente para um exterior composto de árvores, capim e mato, se tornam repentinamente os maiores inimigos e em selvageria avançam um contra o outro, reproduzindo, impedidos pela paisagem, o drama do Crime do Começo. O gato refugia-se no topo da árvore para sobreviver ao ódio do amigo cachorro e quando este desaparece, o gato volta ao interior doméstico e lá se encontra de novo com o seu velho amigo, em termos circunspectos e polidos como dantes.           

A influência da paisagem apresenta-se no caso de tal importância que uma simples mudança de paisagem reaviva a Memória da Espécie e provoca a ação do Crime e o retorno à paisagem doméstica é igualmente forte e de ação imediata, a ponto de encobrir os caracteres do mundo antigo do Crime e de obliterar o fenômeno de Reversão antes constatado.

A instabilidade da Reversão é uma função da paisagem. A intensidade da Reversão também é uma função de paisagem. A medida que a paisagem varia rumo ao doméstico ou a medida em que a evolução se processa, os instintos criminosos são afastados.

Rancor e ódio acontecem quando o homem é privado das aquisições da civilização que são os Direitos do Homem e, enfrentando condições adversas de vida, ele é obrigado, por um processo estimulante de imitação, a reverter a um estado antigo e selvagem e se tornar um criminoso exibindo os caracteres do Mundo do Começo e a Memória da Espécie.

A execução do crime é uma tentativa de volta para as condições de vida existente na floresta antiga. O ato de executar o Crime satisfaz pois aos desejos mais antigos do homem, desejos estes comuns a todos os homens. O ato de executar o Crime tornar-se, portanto, uma fonte de prazer e de alegria e como tal é exercido com brevidade.

É interessante constatar que essa Brevidade se encontra no Crime, na alegria, na histeria, nas ações do primitivo e da criança e no movimento reflexo. O Crime torna-se uma manifestação de histeria. A execução do Crime é uma dramatização extrema da vida, uma manifestação teatral que se processa de maneira abreviada; o desejo de possuir é levado a uma realização direta e imediata sem nenhum movimento intermediário e funciona com a mesma brutalidade direta de um reflexo.

O reflexo nos diz, P. Janet, é uma ação que tem a natureza brusca do “tudo ou nada do primitivo. Não há intermediário, o reflexo se realiza total e explosivamente e independente dos impulsos psíquicos”.

A fase de execução do Crime pode ser localizada na fase de tremores e convulsões. Todas essas formas de movimento são características do mundo do Começo. As explosões motrizes do histérico aparecem tão repentinamente e tão rapidamente, que são consideradas como surgindo de um mundo anterior antigo e não sofrem influência subjetiva. A rapidez com que aparecem esses movimentos bruscos é uma demonstração da sua grande antiguidade e do seu caráter reflexo. Pertencem a infância do mundo e efetivamente se associam ao modo de agir da criança.  


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 5 de maio de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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Textos anteriores:

Filosofia zumbi
(fragmento)


Notas para a reconstrução de um mundo perdido (XIV):
O Bailado e o crime


Notas para a reconstrução de um mundo perdido (XV):
A alegria e o Crime


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.