Filosofía zombi
de Jorge Fernández Gonzalo
Madri, Anagrama, 2011
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O SOPRO apresenta a tradução (feita por Alexandre Nodari) das páginas iniciais de Filosofía zombi, livro de Jorge Fernández Gonzalo (Madri: Anagrama, 2011).
Filosofia zumbi
Jorge Fernández Gonzalo
TRAILER
Introdução
Zombies won’t be able to do philosophy.
[Os zumbis não serão capazes de fazer filosofia]
Owen Flanagan, “Zombies and the Function of Consciousness”
A zombie has a different philosophy. That is the only difference. Therefore, zombies can only be detected if they happen to be philosophers.
[Um zumbi tem uma filosofia diferente. Esta é a única diferença. Portanto, zumbis só podem ser identificados caso sejam filósofos.]
Jaron Lanier, “You can’t argue whit a Zombie”
As produções sobre zumbis muitas vezes se apresentam como um barômetro de certas inquietudes sociais. Filmes, séries televisivas, videogames, quadrinhos e mesmo desfiles ou zombie walks animam o circo mediático e as práticas do transcultural, punk ou anti-sistema a partir de uma perspectiva lúdica e, ao mesmo tempo, perturbadora. Todavia, as páginas que lerão a seguir não pretendem abordar de maneira sistemática o fenômeno histórico-cultural do zumbi em sua relação com o cinema e outras artes, nem oferecer uma leitura moral ou paródica de seus estilemas e dos enredos icônicos preferidos do gênero. Trata-se de conceber uma filosofia zumbi, de autorizar o zumbi como conceito, como metáfora a partir da qual se pode entender o entorno mediatizado que nos rodeia: desequilíbrios financeiros, paixões reduzidas ao pastiche de sua expressão hiper-real, modelos de pensamento assegurados pelo poder e consolidados pela implementação da maquinaria capitalista. Porque, como nos filmes lado B, sempre se está falando de outra coisa, ainda que não se queira: Jorge Martínez Lucena assinalava a relação entre A invasão dos ladrões de corpos, de 1956, em pleno auge do macarthismo, e o medo diante de uma possível alienação comunista. Ou como aponta Serrano Cueto, “no caso de George A. Romero, o zumbi é utilizado como instrumento para articular uma crítica social, uma análise dos conflitos humanos, que, com pouco esforço, pode ser associado com momentos históricos determinados (a guerra do Vietnã em A noite dos mortos-vivos), situações comumente aceitas, mas não por isso menos doentias, como o consumismo exacerbado (O despertar dos mortos) e a informação sensacionalista (Diário dos mortos), o abuso do poder militar (O dia dos mortos) ou a luta de classes (Terra dos mortos)”. O próprio Romero havia deixado isso claro em uma entrevista a Scifiworld: “todos meus filmes sobre zumbis surgiram a partir de idéias, ao observar o que está ocorrendo no plano cultural ou político, no momento em que o filme está sendo rodado”.
A semiótica do zumbi é a do desvio, a de uma ocultação indiscriminada. Só quem achar necessário poderá ver aqui um ensaio sobre mortos vivos: no entanto, nosso intuito é oferecer uma análise relativa à linguagem, à hiper-codificação do mundo atual, aos vícios do capitalismo ou da moda e os farrapos afetivos que foram despedaçados pelas modernas sociedades computadorizadas. A relação entre os capítulos ou fases é pouco mais que anedótica: a partir da filmografia de George A. Romero, encadeamos uma série de temas que não concernem somente a seus filmes, mas que também permitem articular toda uma crítica, mais ou menos sistemática, à ordem estabelecida, a seus discursos, suas quimeras aceitas. Não faltarão tropeços nem hesitações, tateares no escuro, estrondos, dribles para esquivar os avanços da infecção. Assim, uma parte [do livro] nos remete ao poder do desconhecido que a mitologia zumbi põe em jogo através do medo e da espetacularidade de suas imagens, outra nos previne contra a ameaça de nossas próprias servidões hiper-consumistas, aquela psicanaliza o zumbi, a mais além desconstrói a horda e suas práticas grupais, em outra se exploram as formas de afetividade degradadas e a última das partes apresenta uma análise do fenômeno da cópia e da subversão literária. Tudo ocorre ao modo de uma praga, por infecção e dentada dos temas, os quais, pouco a pouco, encadeiam o corpo desfiado da narração. Corpo incompleto, com zonas expostas ao olhar e vazios que nos mostram a visibilidade do fundo, buracos através dos quais se pode pensar, escrever, dizer aquilo que os grandes relatos da filosofia tinham ocultado até pouquíssimos anos. Pois, como dizia Michel Foucault, o objetivo do pensamento não haveria de ser, como até agora, o de preservar obras, autores ou modelos de esquematização do real; antes, corresponde à filosofia sempre ir além, pretender, de algum modo, mostrar novos caminhos, abrir sendas, espaços intransitados e dependências desconhecidas de nossa razão – ainda que, para tanto, se tenha de decapitar uma torrente de zumbis.
Contudo, quem quiser se empenhar em procurar nestas páginas essas entranháveis e pútridas criaturas poderá fazê-lo. E as encontrará em quase todas as páginas. Centenas delas, legiões de mortos vivos. O único problema será que, nessa busca intrépida, o leitor possivelmente se deparará com um espelho ao final do labirinto, e que a imagem destes andarilhos esfomeados não lhe devolva nada além de seu reflexo deformado, tudo aquilo que acreditava ser seu visto agora em estado de decomposição como efeito desta outra praga, muito mais velada que todos os cadáveres do mundo levantando-se da terra, mas igualmente virulenta, trazida pelo desenvolvimento de um novo capitalismo afetivo e mediático que assistimos expectantes.
Fica o aviso.
ROLO I: “A noite dos mortos vivos” (1968)
O horror do indizível
Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Ele quer ver aquilo que o está tocando; quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao menos, de classificá-lo. Por toda parte, o homem evita o contato com o que lhe é estranho. À noite ou no escuro, o pavor ante o contato inesperado pode intensificar-se até o pânico. Nem mesmo as roupas proporcionam segurança suficiente – quão facilmente se pode rasgá-las, quão fácil é avançar até a carne nua, lisa, indefesa da vítima.
Elias Canetti, Massa e poder
O zumbi representa essa força do ignoto a qual Canetti se refere. Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. O impulso do irrepresentável, o traço sem figura que nos obriga a fugir da realidade, a repudiá-la, a negar sua proximidade grumosa, mas indiferenciada. O imediato que carece de nome, a presença que não termina de se concretizar no sortilégio da unidade, que não se refugia na linguagem, mas se sustenta por uma dispersão, entre os vãos e labirintos do vero. Aí está o medo, a angústia, o desassossego humano. H. P. Lovecraft afirmava na abertura de seu famoso texto O horror sobrenatural na literatura: “O medo é uma das emoções mais antigas e poderosas da humanidade, e o medo mais antigo e poderoso é o temor do desconhecido”. E prossegue: “Os primeiros instintos e emoções do ser humano formaram sua resposta ao ambiente em que se encontrava. Os sentimentos bem definidos baseados no prazer e na dor cresceram em torno aos fenômenos cujas causas e efeitos ele compreendia, enquanto que em torno daqueles que ele não entendia se teciam aquelas personificações, interpretações maravilhosas, e sensações de medo e terror tão naturais em uma raça que tinha poucas idéias elementais e uma experiência limitada”. Até hoje, a ciência ou a filosofia trataram de suprir esses feixes irrepresentáveis através do delírio das classificações, das leis da identidade, como se o nome, o gênero ou a familiaridade de conceitos fosse suficiente para romper com essa angústia premente do ser da que falava o Heidegger de Ser e tempo. O temor, por um lado, encontra o material que o tortura, sabe o que é aquilo que teme, frente à desolação da angústia, que desconhece o que o atenaza e nos situa perante o que não podemos experimentar. Uma filosofia zumbi, portanto, aceita o desafio: pensar a rasgadura. Pensar estes farrapos de presença, as purulentas deformações do real, o que não chega ao nome, os ramais de corpos, espaços ou texturas, que se vêm forçados a uma desmedida irrepresentável. Zumbi é essa estranha palavra para o que não tem nexo, identidade, fisionomia, corpo. Pensar o zumbi é também pensar o impensável.
Foucault, em seu famoso ensaio As palavras e as coisas, falava de como havíamos perdido a capacidade de referir através da linguagem. As palavras haviam se ofuscado, nos deixando com o aroma de sua presença, dos desvios e diferenças substanciais, dos artefatos semióticos. A linguagem não é um cristal, mas um colorido vitral, um túnel de uma infinidade de labirintos. Mallarmé escreve estes signos sobre o papel: não há mundo. As palavras que antes ditavam a lei do que se podia ou não dizer agora recaem na sorte de um lance de dados. Nas últimas décadas, essas propriedades haviam se intensificado, chegando ao ponto de não sermos capazes mais de sentir nenhuma das fórmulas de inserção ou presença. Perdemos o contato com o mundo e nadamos nas diferentes produções de signos, as múltiplas linguagens e simulações do real. Baudrillard ou McLuhan fixam o olhar nesta exposição dos signos, nos mostram as entranhas (“o meio é a linguagem” [“o meio é a mensagem”], insiste McLuhan) como se não houvessem corpos, superfícies sem vernizes, espaços descobertos. Tudo hoje é percebido a partir de uma galáxia de códigos e signos, por uma hiper-estruturação no olhar, na linguagem, em cada tentativa de pensar o real.
Não por acaso, na primeira das obras de George A. Romero a ameaça não tem nome, nem causa, mal pode ser designada ou concebida. Nem o rito vudu sobre o qual já haviam falado livros como The Magic Islands em 1929, de W.B. Seabrook, ou filmes como White Zombie, de 1932, com um sempre sinistro Bela Lugosi, ou I Walked with a Zombie, de Jacques Tourneur, em 1943; nem perigos espaciais, como acontecia em Plano 9 do espaço sideral, de 1959, dirigida por Ed Wood e considerada uma das piores produções da história do cinema. Romero nos apresenta o terror do indizível, a massa persistente e enlouquecida. O zumbi não tem nem razão de ser, nem discurso, nem mesmo receber o privilégio da denominação. De fato, ao longo do filme, não se utiliza uma única vez a palavra zumbi, razão pela qual se deve necessariamente perceber a importância do batismo popular que quis que esses peculiares canibais coincidissem com os autômatos clássicos do cinema. Os famosos zumbis de Romero não eram tais, mas uma massa de homens alienados, provavelmente renascidos da morte ou acometidos por uma obscura maldição espacial, com um apetite monstruoso por carne e desprovidos de sua capacidade de raciocínio. Ainda que não totalmente: o primeiro destes vorazes carrascos é capaz de apanhar uma pedra e utilizá-la para atingir a janela do carro no qual o personagem de Bárbara pretende se esconder; entretanto, ele e seus congêneres só se movem de maneira instintiva, retrocedem com certo pavor diante do fogo (instinto de conservação que nem sempre será retomado na saga) e são incapazes de lembrar qualquer vestígio de sua existência passada. Os zumbis anônimos, duplamente anônimos da obra de Romero (não conhecemos nem o que são, nem, em muitos casos, quem foram) iniciam uma das mitologias mais interessantes do panteão do fantástico na cultura de massas pós-moderna, muito distante do rito haitiano do vudu, cuja análise antropológica terá pouco espaço nesse trabalho.
Vemos neste primeiro filme da saga alguns dos pontos chaves da condução do fenômeno zumbi. Sentimento de aflição, proximidade crescente da ameaça, ausência de razões que nos indiquem qual é o motivo que acarretou o apocalipse. E, claro, zumbis, zumbis de grande sobriedade, de essencial mutismo, que pretendem atacar os protagonistas. É, contudo, a conduta destes sobreviventes o que se destaca na primeira produção do mestre do gênero. Um filme em que o espasmo de medo fosse total e continuado seria insustentável tanto para a própria integridade do roteiro, como para a recepção por parte dos espectadores. Entretanto, Romero reveste estes espaços vazios com situações complexas e conflitos tão ou mais interessantes que as cenas de ação propriamente ditas. Discussões entre personagens, jogos de poder e territorialidade, decisões, desavenças, pactos. O espaço da casa se converte em cenário para a descarga dos fantasmas interiores dos protagonistas, que, se certamente têm medo, realmente são o medo, representam o horror e o desgaste das relações interpessoais nos momentos de dificuldade. De certo modo, o desenvolvimento narrativos dos acontecimentos os impele a desfiar a tessitura dos pactos sociais (metáfora de alianças familiares em desintegração como nas modernas famílias americanas), de modo que os personagens não conseguirão se pôr de acordo, do mesmo modo que, diante da proximidade da ameaça, é impossível coordenar gestos, discursos, raciocínios (estes são a torpeza de um corpo diante do espanto), e fazer frente a um horror que nos supera em todos os sentidos. Mesmo da falta de sentido.
O filme causou um grande impacto à época, mesmo que não tenha sido tanto por seu realismo (há poses, atitudes e efeitos de maquiagem realmente inverossímeis) quanto pelo efeito de velamento proposto. Os personagens são a máscara de nosso medo. Máscara do choque, como a pobre Bárbara, comocionada pelo desaparecimento de seu irmão; a máscara de Bem, que pretende assumir a liderança e utilizar a razão, ainda que acabe também se desdizendo e se refugiando no sótão, contrariando o que havia proposto a princípio; a máscara de Harry, despótico pai de família que, a despeito de sua hostilidade, não quer outra coisa senão defender sua esposa e filha, ou os apaixonados Tom e Judy, sempre um atrás do outro. Máscaras, todos eles, de um corpo, de uma massa semelhante à horda que se amontoa às portas da casa, em que cada um parece simbolizar de algum modo os fantasmas interiores, as respostas frente ao medo (paralisia, frieza e raciocínio, ira, empatia e instinto de proteção), que nem sempre coincidem, e que, geralmente, alcançam desmembrar a tipologia de nossas respostas frente ao pesadelo, apesar de levarmos conosco, em nossa bagagem de emoções aprendidas, cada uma destas formas de reação. Todos eles são o medo, nosso medo, suas diferentes manifestações, as variações e gradações prototípicas. O medo convertido em muitos e em nenhum, medo tentacular, abismal, em constante ruptura consigo mesmo. Máscaras do medo, do horror humano, não reações com pretensão de verossimilhança, mas jogos de contrastes que abrem ainda mais a objetiva a partir da qual olhar a condição humana.
Haveria, portanto, um baile de máscaras que será muito interessante quando desenvolvermos em nosso estudo outros fenômenos de caráter distinto. Dissemos baile justamente pela acumulação de representações a que temos contato durante a visualização de um filme. De um lado, as máscaras de nosso medo e da decomposição dos núcleos afetivos dos personagens. De outro, as “máscaras da vida”, a espetacularidade do zumbi como aquilo que nos excede de nós mesmos, como aquilo que sou e que, contudo, é mais que eu, uma representação que me transborda e que supera a própria narrativa que teci em torno a mim. Nas palavras de Borja Crespo, “o lado obscuro da condição humana fica descoberto frente ao nosso horror, mostrando-nos o verdadeiro perigo de uma sociedade em decomposição: nós mesmos. Os corpos sem vida que se arrastam diante de nossos olhos são nossa projeção”. Projeção seria um bom termo para definir a mitologia dos silenciosos carrascos do filme de Romero. O zumbi me projeta, projeta meus afetos, meus discursos, serve de tela para ampliar essa especularidade insuportável do ser humano. Não deve nos surpreender, portanto, que este recurso especular em um plano não possa se dar em outro. A narração, assim, encobre também uma velada correspondência com uma circunstância, um determinado acontecimento social, um clima histórico-econômico que transcende a tela de reprodução e que conecta a dimensão fictícia com os acontecimentos reais. |