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XIV - OS GATOS DE ROMA
O Bailado e o crime

O primeiro chefe não somente foi o primeiro bailarino mas também foi o primeiro criminoso. O Soluço abriu caminho para a Visão Geográfica e para a volúpia do mundo.

A floresta plasmara e abrigara todas as grandes forças do começo do homem orientando o seu comportamento e a sua evolução.

A delinqüência e o crime constituem o comportamento fundamental do homem-bailarino se exibindo na floresta antes de aprender a andar.

Há uma grande identidade entre os movimentos do homem no começo, do criminoso, do bailarino, do histérico e da criança.

Em todos esses elementos encontrados na vida observam-se os movimentos que aparecem como fator comum e que são: tremores e convulsões, paralisia e contrações, sacudidelas da epilepsia e relaxamento flácido dos músculos. Aparentemente esses movimentos são oriundos do aparelho reflexo com formação vegetativa e por conseguinte seriam da maior antiguidade filogênica.

Os movimentos do bailado e a sua exibição teatral são os movimentos e a exibição da histeria e ambos se associam aos estados de hipnose e de sonho. A histeria é considerada por Dide uma sobrevivência da atividade infantil. Acredito que seja mais uma sobrevivência da infância do mundo.


O bailarino desenvolvendo os seus movimentos se encontra isolado dentro de um mundo imaginário inacessível à novas impressões sensoriais. A sua agitação e o seu exibicionismo teatral nada tem que ver com o mundo da consciência em redor e faz do bailarino um ator e como ator ele é a fonte dinâmica do sonho cabendo à assistência o papel de sonhador mesmo como acontece com o hipnotizado e com o homem sonhando: ambos assistem a um espetáculo. O seu mundo representa uma ilha circunscrita que não pode ser perturbada como acontece com o mundo do sonho e da hipnose e do estado crepuscular histérico.

Na Idade Média, a dança de São Guido aparece com os sintomas da histeria; tremores, sacudidas da epilepsia e movimentos convulsivos e quando se manifestou a epidêmica no século XIV conduzia à morte.

A rigidez cataléptica em forma de pose estatuesca que ocorre na pausa repentina no Fandango e na Seguidilla é de natureza histérica e é uma simulação de morte repentina num momento de perigo. O Fandango e a Seguidilla são de grande antiguidade.

Na dinâmica da histeria, os movimentos de tremores, convulsões, paralisia, contrações e relaxamento flácido interrompem o plágio mimético teatral da crise de nervos e é sempre um movimento contrário que sucede o anterior.
Seria essa interrupção a mesma pausa rígida do Fandango e da Seguidilla e uma simulação da morte e uma necessidade de defesa do organismo do homem?

Sem ela o plágio mimético continuaria se multiplicando “ao infinito” com desdobramentos de imagens iguais e indistinguíveis.

O bailarino em atividade se encontra sempre histericamente, rígido com os músculos tendidos ao máximo e toda a sua atenção presa ao mimetismo teatral do seu tema-sonho.

Todos os movimentos primitivos que são os movimentos de histeria, do bailado, do crime, e da criança, visam uma defesa própria, da mesma maneira que a tempestade de movimentos e a escolha de um movimento abreviado visa a defesa do indivíduo.

Referindo-se as manifestações motoras da histeria, Maurice Dide focaliza bem este mecanismo de defesa quando diz: “Todos concorrer à organização automática de um sistema de defesa por mutação, substituição, equivalência psicológica. Eles agem pelo mimetismo das emoções de outros, eles dramatizam os êxtases e os fervores religiosos ou então procuram um refúgio para a sua fraqueza na piedade ou na simpatia inspiradas pelos déficits aparentes...”

A histeria encontrada ainda nas religiões de hoje, como plágio mimético sexual, conduzindo a dança enfurecida, às vezes com atentado lúbrico, como com os mahometanos, é uma indicação da antiga origem criminosa da dança. Através da história, com freqüência, o homem intuitivamente marca a dança como estigma do crime. O regime Puritano na Inglaterra eliminou a dança que só reaparece com a Restauração.

Lombroso acha que o gosto imoderado pela dança é estigma de criminalidade constitucional e acha também que as anomalias dos criminosos surgem em parte da degeneração e em parte do atavismo.

Essas observações de Lombroso concordam com o que foi dito anteriormente e conduzem a localizar a dança e o crime como sendo as primeiras manifestações dinâmicas do homem.

Lombroso coloca o criminoso entre o alienado e o selvagem. Esse selvagem de Lombroso na realidade é um personagem muito antigo e se encontraria em uma das suas fases, no começo do homem. As anomalias desse selvagem seriam as mesmas do criminoso e encontraríamos todo o crime instalado no homem do começo.

A simulação de imbecilidade infantil encontrada com freqüência no criminoso, o aproxima do bailarino e do homem situado na infância do mundo. A importante observação de Lombroso torna-se mais conspícua ainda quando consideramos que a predileção pela dança intensiva é encontrada principalmente entre pessoas com tendências histéricas e que a manifestação histérica é uma coisa estruturalmente primitiva e de começo do homem.

O crime pertence à floresta e ao cenário de penumbra da floresta. O crime pertence ao Bailado do Começo. O homem só passa a distinguir entre o assassinato e a morte natural uma vez que ele separa claramente o sono da vigia, e isto só acontece quando ele abandona a floresta.   


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 14 de abril de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.