XX - OS GATOS DE ROMA
O Homem-Árvore
A longa noite apresentada pelas condições técnicas da floresta era uma necessidade para impor a sobrevivência do homem e esta longa noite, que sugeria um sono prolongado para o mesmo fim, se associa ao sono prolongado da criança recém-nascida. O homem que se encontrava em estado permanente de transe era um Inspirado pelas forças do começo e se agitava moldando um comportamento e assumindo poses e atitudes de Defesa Passiva, os mesmo gestos de Defesa Passiva ostentado pela criança. Ele se isolava do mundo pela camuflagem e confundindo-se com este evitava a formação de uma personalidade, era o oposto da noção de indivíduo agredindo o mundo; era o início de um longo período de esquizofrenia.
O homem não podia ter personalidade, pois esta seria destruída caso se manifestasse: seu único refúgio era o estado de transe da penumbra e da esquizofrenia. A diferença entre a noite e o dia ou bem entre o sonho e a realidade era pequena para o homem do começo mergulhado na sombra permanente da floresta, o que é corroborado pela observação conhecida na qual o primitivo mesmo como o esquizofrênico não distingue quase entre o sono e a realidade.
A longa noite do homem na floresta do homem esquizofrênico em estado de transe, noite prolongada pela natureza para fins de defesa, não somente havia desenvolvido o dom de adivinhar o pensamento, mas havia criado a Quimera.
Essa Quimera teria sido a conseqüência natural da Descida da Árvore.
O pré-homem ao descer da árvore deparava com um mundo objetivo composto na maior parte da árvore do animal e possivelmente teria ele se disfarçado no vegetal e no animal encontrado embaixo, como medida de defesa a fim de não desaparecer devorado pelas grandes feras. Este disfarce liga profundamente e, ao que parece, para todo o sempre, o homem que nascia ao mundo vegetal e ao mundo animal. É também possível que esse disfarce não se tenha dado ao descer da árvore mas sim muito mais tarde com os primeiros contatos com o mundo da claridade, momento em que o homem se tornava um personagem mais visível e melhor delineado pela luz, momento em que ele estava apto a se tornar um indivíduo.
Me parece no entanto mais provável que o homem-árvore e o homem-animal tenham se desenvolvido no escuro da floresta como manifestações de retraimento e de isolamento do homem e como manifestações de esquizofrenia e de Defesa Passiva no local apropriado à essa forma de defesa.
O homem na floresta era um prisioneiro do seu disfarce, do seu retraimento e do seu mundo de quimera enquanto que o homem fora da floresta, o homem pertencente à um período diurno e focalizado como indivíduo e sem disfarce, seria o homem à procura da sensação de liberdade, o homem com um novo comportamento dentro de um outro mundo.
Os dois elementos que auxiliaram a sobrevivência do homem na floresta e que aparecem durante o estado de vigia do homem, o homem-árvore e o homem-animal, pertencentes ao período esquizofrênico de Defesa Passiva não tinham linguagem articulada, eram arrítmicos, proferiam sons prolongados, se utilizavam de manifestações kinésicas, de uma linguagem de dedos semelhante à do surdo-mudo e que era como os galhos da árvore, proferiam gritos estridentes e longos grunhidos e murmúrios estranhos. Retraídos, encolhidos, isolados e em estado prolongado de sono e de transe, eram difíceis de ser encontrados. O homem-árvore freqüentemente dormia em pé imóvel e sem personalidade ao passar a fera de grande porte.
As ligações afetivas e a intimidade existentes entre o homem e a vegetação se tornam tão bem marcadas e fortes que em toda a sua história até hoje são encontrados os vestígios dessa importante vida do começo. Nos costumes dos povos primitivos e nas lendas que indicam a vida esquecida e perdida, o homem se apresenta como o igual da árvore.
Freqüentemente a árvore é assassinada e há uma ressurreição da árvore e com freqüência o espírito da árvore torna-se o espírito do homem. O homem-árvore do começo e as efígies gigantes de épocas recentes eram jogadas na fogueira para garantir a ressurreição da vida na primavera ou eram jogados na água para obter chuva.
Apesar do homem conversar com a árvore e pedir perdão ao cortá-la, o pedido de perdão nada tinha que ver no seu início com o sofrimento da árvore pois o primitivo do começo não se preocupava com o sofrimento.
Oferecia ele sacrifícios à árvore, casava as árvores entre si e a árvore fêmea era tratada como mulher grávida. Queimava ele e assassinava as árvores como fazia com os deuses e os reis em declínio. A árvore era o receptáculo e armazenava o fogo em forma de seiva.
O homem-árvore existe como objeto que fazia parte do mundo em gestação, como objeto inerente e preponderante na paisagem da floresta até o fim do período de Defesa Passiva, isto é, até o fim da linguagem kinésica inarticulada, conservando-se posteriormente como sobrevivência afetiva do mundo anterior.
Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 2 de junho de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera
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