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Mito e linguagem

por Furio Jesi


O SOPRO apresenta a tradução, realizada por Diego Cervelin, de cinco fragmentos de Furio Jesi (1941-1980). Os textos, organizados por Giorgio Agamben e Andrea Cavalletti, foram publicados pela primeira vez no número 12 da revista
Cultura Tedesca (Roma: Donzelli), em dezembro de 1999, usada como fonte das traduções aqui publicadas.





[ Fragmento I | Fragmento II | Fragmento III | Fragmento IV | Fragmento V ]





Fragmento I
Mito e linguagem


Nota dos organizadores (Giorgio Agamben e Andrea Cavalletti):
Original em duas folhas manuscritas. O fragmento, como os outros (entre os quais, três de mesmo título) que recolhemos nesta seção, deve ser relacionado ao âmbito temático de Mito e linguaggio della collettività, publicado pela primeira vez em Sigma, n. 7, setembro de 1965, e do primeiro capítulo de Germania segreta, Milão: Silva, 1967. Trata-se de uma retomada dos argumentos kérenyanos de Dal mito genuino al mito tecnicizzato, ensaio que o próprio autor enviou a Jesi em 05 de outubro de 1964 (cf. Jesi, F.; Kerényi, K. Demone e mito. Carteggio 1964-1969, organização de M. Kerényi e A. Cavalletti; Macerata: Quodlibet, 1999).


Se o mito genuíno é a realidade em que o conhecimento humano chega ao contato com a verdade sem alterar a sua característica fundamental de ser humana, não se pode conceber linguagem que não seja verdadeira sem ser mítica. No entanto, essa proposição contém muitos elementos obscuros, que devem ser substituídos por afirmações menos superficiais ou ambíguas caso se queira atribuir a ela valor de axioma. Que relação pode subsistir entre mito e conhecimento humano? Mito e conhecimento humano parecem entrar em contato no instante em que do inconsciente afloram ao nível da consciência imagens que nós chamamos míticas. Que exatidão e que importância tem essa denominação? Entre inconsciente e consciência existe um antagonismo: do inconsciente surgem em direção à consciência forças que ela recusa como estranhas a si. No entanto, ocorre que a consciência é forçada a acolher imagens em que reconhecemos uma íntima relação com o inconsciente: tão íntima que nos consente considerar aquelas imagens manifestações do inconsciente.

Estamos aqui diante de uma contradição em termos.






Fragmento II
Mito e linguagem
Premissas: possibilidade de encontrar no mito
o fundamento da invariância das leis semânticas


Nota dos organizadores:
Folha única, datilografada.


No âmbito das ciências matemáticas e físicas, a necessidade de encontrar um «ubi consistam», um «alguma coisa» que não varie com a variação dos sistemas de referência aparentemente conduziu à definição de dois diferentes tipos de “invariantes”, um derivado das pesquisas no campo da matemática pura, outro das pesquisas no campo da física. A diferença mais profunda entre esses dois tipos de “invariantes” parece consistir no fato de a “invariante” matemática ser construída pelo homem e a “invariante” física [ser] uma espécie de lei da natureza. É evidente que, em um exame um pouco mais aprofundado, também a “invariante” física se revela dependente das modalidades humanas de percepção e raciocínio, e, dessa maneira, também pode vir a ser considerada como construída pelo homem. Isso não exclui que o esforço, ou a tendência, do homem em atribuir uma certa objetividade extra-humana ao seu conhecimento da natureza possa ser considerado menos sintomático de uma memória platônica de conhecimento transcorrido e pesaroso.

A faculdade de confirmar tal suposição depende da identificação na realidade biológica e psíquica do homem de um quid que represente o trâmite e a determinante de harmonia entre subjetividade humana e objetividade natural. A existência de um tal quid, se estivesse em relação inteiramente com o ser humano, influenciaria também o mecanismo da imaginação e da linguagem, e garantiria provavelmente à linguagem um fundamento de verdade objetiva, extra-humana, sobre o qual deveria basear-se uma “invariância” das leis semânticas: “invariância” tanto do ponto...






Fragmento III
Imagem, mito e linguagem


Nota dos organizadores:
Três folhas datilografadas.


1. Cognoscibilidade da imagem.

A noção de conhecimento racional implica aquela de incognoscível, pelo menos no âmbito de um discurso que considere o não ser ao lado do ser. Se, de fato, se põe em relação a noção de conhecimento racional com aquela de não existência, atinge-se o conceito de incognoscível. Evidentemente, porém, nos encontramos diante de um incognoscível que é apenas parcialmente tal, se o conhecimento racional pode implicar a sua existência, e se então nos é possível conhecê-lo racionalmente, ao menos possuindo uma noção dele por negação, a qual coincide com uma imagem.

Se, por outro lado, consideramos a realidade da imagem, podemos observar que participam dela tanto o conhecimento racional quanto o incognoscível. Além daquilo que pode ser objeto do conhecimento racional, isto é, o conceito matemático, está presente na imagem alguma coisa de diferente: alguma coisa que parece em relação direta com o mecanismo da sensação, e, portanto, estranha ao âmbito do conhecimento racional. Quando o conhecimento racional se aproxima de uma imagem, não pode compreendê-la em sua completude, mas tal completude, pelo contrário, é percebida pela consciência, no âmbito da qual os dados da consciência racional se unem àqueles da percepção sensorial. Não só isso: na consciência os elementos racionais e extra-racionais que compõem a imagem são percebidos unitariamente, organicamente; apenas o conhecimento racional chega a dissociá-los, intervindo sobre as percepções da consciência. Pode-se, então, supor que na consciência exista uma espécie de “terra de ninguém” onde as características do conhecimento racional e do incognoscível vão diluindo-se umas sobre as outras, e que há nessa “terra de ninguém” um ponto crítico em que o incognoscível não é mais inteiramente tal a ponto de rejeitar o conhecimento racional, e vice-versa. A imagem seria, pois, o resultado da síntese operada na consciência entre conhecimento racional e incognoscível: síntese verificada graças ao diluir-se das características do conhecimento racional e do incognoscível, os quais no limite dessa diluição atingiriam um estado diferente de seus dois estados originários e autênticos. A imagem, por isso, não seria jamais de todo racionalmente conhecida, nem de todo incognoscível, mas pertenceria a um “terceiro estado”, que seria aquele das percepções da consciência.

Das proposições precedentes resultam duas diferentes noções de conhecimento: uma é aquela do conhecimento racional, outra é aquela do conhecimento não exclusivamente racional que está implícita na ação do conhecimento. Aquilo que para a primeira é incognoscível, não o é necessariamente para a segunda. Também para a consciência, todavia, existe um incognoscível, ao qual a propósito deu-se o nome de inconsciente, e agora resta saber em quais relações com o inconsciente esteja a imagem.

A ciência da psicologia nos ensina que as imagens percebidas no nível da consciência geralmente têm estreitas relações com o inconsciente. Essas relações foram descritas como um aflorar, a partir do inconsciente, à consciência, como, em suma, o resultado de uma passagem do inconsciente à consciência. Uma passagem do incognoscível ao cognoscível e conhecido deveria implicar uma mutação na natureza do objeto que é protagonista de tal passagem, isto é, da imagem. Ora, sem dúvida devemos então supor que na imagem há alguma coisa que pertence ao inconsciente ou que, pelo menos, é determinada pelo inconsciente. Justamente essa conclusão é o resultado das pesquisas sobre os arquétipos empreendidas por Jung e por sua escola. A unidade orgânica da imagem, na qual se reúnem elementos perceptíveis pela consciência e elementos inconscientes, é realizada no nível da existência biológica do indivíduo humano, fora do âmbito da consciência. Nesse ponto, as duas formas de conhecimento mencionadas, aquela do conhecimento racional e aquela implícita na ação da consciência, não são mais suficientes. A imagem na sua totalidade escapa a ambas as formas de conhecimento, e subsiste em um nível de completa existência humana que, no entanto, para ser tal, deve implicar uma forma de conhecimento, a qual deve ser o conhecimento que o organismo humano na sua totalidade tem de si. Esse conhecimento do próprio ser coincide com a existência de cada célula ou de cada átomo do organismo humano, que sabe existir pelo fato mesmo que existe. As modalidades desse conhecimento total que o organismo humano tem de si, para além do conhecimento racional e da consciência, são identificáveis no variar das imagens entendidas na sua plenitude extra-consciente e subsistem como lei biológica.






Fragmento IV
Mito e linguagem


Nota dos organizadores:
Duas folhas datilografadas. Sobre o tema da paródia, vejam-se os dois textos escritos por Jesi entre 1964 e 1965, Parodia e mito nella poesia di Ezra Pound e L’esperienza religiosa di Apuleio, em F. Jesi, Letteratura e mito; Turim: Einaudi, 1968 e 1981, pp. 187 e ss; e a carta de Jesi a Kerényi de 29 de outubro de 1964, em Demone e mito. Carteggio 1964-1969, organização de M. Kerényi e A. Cavalletti; Macerata: Quodlibet, 1999., pp. 24 e ss.


É costume dizer que um mito na sua forma originária ou muito antiga se apresenta sempre como uma verdade: verdade presumida ou efetiva, mas ainda assim verdade, ao menos nominalmente. Os estudos sobre a mitologia partem geralmente desse ponto de vista; eles, porém, normalmente não falam de «mito», mas sim de «imagens míticas», e das imagens míticas mostram o progressivo “decair” e, isto é, o seu progressivo ser incompreendidas e abandonadas em relação à mudança das condições de vida e dos institutos econômicos e sociais. Sobre a base daqueles estudos se poderia dizer, então, que, no curso da história, há para os mitos instantes de genuínas epifanias, aos quais seguem períodos de esterilização de tais fluxos míticos, dos quais sobrevivem somente mais escórias variamente alteradas.

Verdades aceitadas inicialmente sem discussão, depois consideradas com ironia polêmica, e enfim relegadas ao nível dos contos de fadas: esse deveria ser o decurso descendente dos mitos em uma seqüência histórica. Entende-se que a sorte de alguns mitos não coincide com a de outros, e que, no instante em que alguns atingiram o ponto mais baixo, outros se encontram no ponto mais alto; ou seja, que, quando sobrevivem apenas formas inertes e incompreendidas de alguns mitos, outros mitos estão aflorando «genuínos».

Se aceitássemos essas hipóteses, deveríamos tirar delas conclusões especiais acerca da relação entre mito e linguagem. Deveríamos, isto é, admitir que a medida da participação do mito na linguagem não corresponde exatamente à curva da verdade atribuída ao mito, mas, pelo contrário, apresenta nos seus confrontos uma inevitável defasagem. No instante em que o mito é mais “genuíno”, ele é totalmente estranho à linguagem, e, antes, opõe-se a ele. Na sua fase originária, o mito é verdade inexprimível, acessível somente através da comoção que permite entrar em contato com um mundo super-humano. Em tal fase, o mito é a coisa diante da qual a palavra se detém.

Quando os homens começam a tentar colher nas palavras a verdade do mito – quando nasce um hieròs logos –, a genuinidade do mito já está diminuída: ele começa a fazer parte de um complexo de verdades tradicionais e propriamente “decai” ao nível da palavra, mesmo que seja sagrada: da palavra talvez secreta, mas concebível.

Pode-se dizer, sem dúvida, que a forma do mito é tal a ponto de consentir-lhe aflorar na consciência também quando a consciência se opõe explicitamente a essa epifania. E isso é demonstrado pelo fato que mesmo em textos de paródia das imagens míticas se podem retraçar presenças míticas que aparecem com carregada sugestão.






Fragmento V
Mito e linguagem


Nota dos organizadores:
Três folhas numeradas e datilografadas. A citação no primeiro parágrafo foi retirada do ensaio kerényiano Dal mito genuino al mito tecnicizzato, que Jesi recebeu do autor em 05 de outubro de 1964 (cf. Demone e mito. Carteggio 1964-1969, organização de M. Kerényi e A. Cavalletti; Macerata: Quodlibet, 1999, pp. 19 e ss): ela fornece um elemento de datação post quem.


No âmbito da cultura grega, o mito se apresenta como uma realidade capaz de objetivar-se em palavras ou em ações simbólicas. O mito é primeiro da palavra, mas acontece “na direção” da palavra e da imagem. Ele então «contém, em um modo genuíno, mesmo o início de duas técnicas diversas: a técnica mitopoiética e a técnica cultual, assim como ele é o pressuposto seja da mitologia seja do culto».

Se se recorre unicamente aos testemunhos gregos, deve-se concluir que o mito influencia sobre a articulação da linguagem mitológica como seu conteúdo. Entre os confins da linguagem mitológica, o mito é o “ser na palavra”. Linguagem mitológica, na qual o mito se objetivou, é historicamente aquilo que os gregos usavam nas narrações dos eventos míticos. Essa linguagem tinha um valor de verdade. A linguagem mitológica era, nesse sentido, verdade graças à relação essencial que a unia ao mito: graças à “direção no sentido à palavra” que era uma característica do acontecer do mito. A relação entre palavra da linguagem mitológica e conteúdo mítico era, então, um vínculo de verdade que se objetivava nas imagens míticas delimitadas ou sugeridas pela linguagem. Ou seja, a linguagem mitológica não era uma limitação da realidade mítica, mas, pelo contrário, a sua natural objetivação.

Esses conceitos são inequivocamente humanísticos e se contrapõem àquela que podemos definir a “poética do inexprimível”: ou seja, às doutrinas que consideram a palavra como uma limitação – inevitável – na relação entre o homem e a realidade, cuja essência seria intrinsecamente inexprimível. Segundo essas doutrinas, a palavra não contém senão um reflexo parcial e alterado da realidade e, então, não pode ser de nenhuma utilidade no esforço de aproximar-se da íntima essência dela: esforço que, para o homem, deveria culminar no silêncio do êxtase. O mesmo conceito de mito genuíno no sentido grego é, desse ponto de vista, insustentável, uma vez que o mito verdadeiramente genuíno seria exatamente aquele não exprimível em palavras.

Da «atitude grega» deriva a noção da poesia sagrada, que extrai sua sacralidade do fato de ser objetivação do mito. Da “poética do inexprimível” deriva uma noção puramente funcional da linguagem, útil apenas para suscitar no homem estados emotivos que consentem o acesso ao silêncio e ao êxtase: à revelação do real.

Ambas as atitudes obviamente implicam em quem as torna próprias uma noção do real: noção particularmente profunda, na medida em que permite precisar as modalidades de acesso a ele [ao real], de acordo com a sua natureza. Isso significa, em outras palavras, que ambas as atitudes se propõem a resolver o problema da linguagem procedendo a partir do exterior, a partir de pressupostos estranhos à linguagem mesma. Porém, pode surgir em nós a dúvida de que o conceito de linguagem, considerado no âmbito de uma problemática cujo elemento determinante, normativo, não seja a linguagem, mas a entidade metafísica ou pelo menos religiosa do real, pode estar envolvido sem dificuldades lógicas em processos intelectuais que o alterem irremediavelmente. Suspeitamos, em suma, que a perspectiva em que a linguagem vem a encontrar-se quando é observada do ponto de vista do intelecto humano voltado para a determinação da proeminência do verdadeiro e do real seja diferente daquela em que a linguagem aparece quando ela mesma é a proeminência da qual se deseja estabelecer a posição, e o real é apenas um sol que ilumina de longe o processo intelectivo em ato.

Se nos propomos a considerar a relação entre mito e linguagem do “ponto de vista da linguagem” e não daquele da verdade que pode estar implícita no mito, devemos antes de tudo reconhecer que a linguagem, enquanto palavra ou gesto, possui sempre uma certa verdade: verdade efetiva ou ilusória – para o momento não nos interessa determinar –, mas verdade. Essa verdade é intrínseca não apenas à linguagem em seu complexo, mas também às imagens que a linguagem delimita ou sugere.

Esse fluxo de verdade que brota do homem no instante em que o homem se serve da linguagem possui um caráter objetivo também quando a vontade subjetiva intervém em grau máximo no fenômeno lingüístico. De fato, a ação mesma de significar alguma coisa – no modo ou com as intenções mais disparatadas – implica exatamente um significado e, então, uma verdade – não importa se efetiva ou ilusória. Significa que, por “verdade”, nós entendemos aqui também “realidade” e, portanto, “essência”.

A partir disso podemos deduzir que a linguagem...




[ Tradução de Diego Cervelin ]


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.