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Del deporte y los hombres
de Roland Barthes

Tradução para o espanhol de Núria Petit Fontseré

Buenos Aires: Paidós, 2008


O esporte ou o espelho do espetáculo

por Victor da Rosa

Os textos de Mitologias, de Roland Barthes, em certa medida, são fatos estranhos dentro da trajetória do autor. Muito próximo da crônica, entre a crônica e o comentário – com textos sobre ciclismo, luta livre e striptease –, Barthes adota uma postura bem próxima daquilo que, anos depois, ficou conhecido como estudos culturais. Após sua passagem pelo estruturalismo, no entanto, em meados da década de sessenta – mas também em livros anteriores a Mitologias, como é o caso de O grau zero da escrita e mesmo de Michelet – pode-se dizer que Barthes atua com uma postura mais próxima do texto literário, da busca pelo que chamou de escritura, postura que atravessa inclusive seus ensaios sobre imagem.

Seja como for, Le sport et les hommes (traduzido para o espanhol em 2008, por Núria Petit Fontseré, em publicação da Paidós - edição em que se baseia esta resenha), curioso texto sobre exatamente cinco esportes – tourada, automobilismo, ciclismo, hockey e futebol, nesta ordem –, escrito exclusivamente para um documentário de Hubert Aquin, deve ser lido como uma espécie de continuação do projeto crítico já presente em Mitologias, conforme anota inclusive Gilles Dupuis em um prefácio à edição: “O que se oferece ao leitor é, portanto, um testemunho sobre o esporte e o homem, um testemunho que deve ser lido como o que pretende ser: umas mitologias inéditas” (p. 11)

Publicado na Canadá em 2003, mas escrito originalmente em 1961 – quatro anos apenas depois de Mitologias, portanto, enquanto Barthes já publicava seus primeiros ensaios com outra orientação crítica – o texto de Le sport et les hommes trata o esporte, em resumo, como um fenômeno social e poético, ou seja: um espetáculo. De fato, o significante espetáculo, assim como a idéia de um combate inútil – sendo o espetáculo, segundo Guy Debord, uma relação social mediada por imagens vazias – já aparece nas primeiras linhas, segundo a forma de perguntas: “Que necessidade tem estes homens de atacar? Por que aos homens emociona este espetáculo? Por que participam tanto? Ao que vem este combate inútil? O que é o esporte?”

É possível, ainda, que a idéia do documentário tenha surgido após Hubert Aquin entrar em contato com as Mitologias de Barthes – mas Aquin, em uma carta a Barthes, dá a entender que se trata mais de uma coincidência, de um encontro fortuito entre uma leitura e um desejo. É Hubert Aquin, de fato, um escritor quebequense completamente desconhecido até então – e ainda completamente desconhecido entre os brasileiros – que entra em contato com Barthes para sugerir a parceria: Barthes se encarregaria do texto e Aquin da montagem visual, feita inteiramente através de apropriações de fotos de arquivos e sequências de noticiários. Desde o começo, enfatiza Gilles Dupuis, o encontro estará marcado pela generosidade de Roland Barthes.

O texto de Barthes apresenta um estilo entre o descritivo – devido, talvez, a sua condição de aparecimento, já que não se trata exatamente de um ensaio, mas de uma espécie de roteiro – e algo mais analítico, já que é constantemente cortado por reflexões, teses. A parte sobre as touradas, por exemplo – que lembra de longe o ensaio de Michel Leiris, O espelho da tauromaquia, certamente lido por Barthes, de 1938 – abre com uma dúvida e uma aproximação com a arte: “A tourada não é exatamente um esporte e, no entanto, talvez seja um modelo e o limite de todos os esportes: elegância da cerimônia, regras estritas de combate, força do adversário, ciência e coragem do homem, todo nosso esporte moderno está neste espetáculo de outra época, herdado dos antigos sacrifícios religiosos. Mas este teatro é um falso teatro: aqui se morre de verdade. (...) Esta tragédia se desenvolve em quatro atos, cujo epílogo é a morte” (p. 17).

Noções como estilo e até mesmo a noção de punctum – desenvolvida por Barthes em sua teoria da imagem – aparecem de modo subliminar ou mesmo direto. O toureiro pinça o touro. O estilo, por sua vez – o estilo do toureiro, no caso, mas parece evidente que Barthes está pensando na literatura – será a conversão de um ato difícil em um gesto com graça; a introdução do ritmo na fatalidade; a valentia dentro da desordem; enfim, a aparência de uma liberdade. Até mesmo um senso de comunidade, com a vitória do toureiro, será o motivo do espetáculo: “O homem fez de sua vitória um espetáculo para que se converta na vitória de todos os que o olham e se reconhecem nele” (p. 25).

Se na tourada o inimigo é uma força animal, no automobilismo o inimigo é muito mais sutil: o Tempo. Diferente da tourada, o automobilismo, esporte essencialmente moderno, inclui a máquina. De qualquer modo, o que se desafia, em ambos, de diferentes maneiras, é o mesmo: a morte. “Neste combate com o tempo, por terrível que seja o resultado, não há nenhum furor: apenas uma coragem imensa lutando contra a inércia das coisas. Daí que a morte de um corredor seja infinitamente triste, pois não é unicamente um homem que morre, é um pouco de perfeição que desaparece deste mundo” (p. 33) E o que seria, neste caso, a morte de um toureiro?

No ciclismo, o desafio do Tempo se combina – ou se atrasa – por outro valor tão próprio dos franceses, em referência ao Tour de France: a preguiça. Curiosamente é com o ciclismo que Barthes lida de modo mais explícito com a metáfora da guerra: “Como nas velhas imagens de guerra, todas as pessoas oferecem bebida ao combatente em marcha” (p. 47) A luta do homem se dá contra outros homens, outras equipes, mas principalmente com o limite da própria resistência, e não tanto da morte. No ciclismo há uma possibilidade definitiva: o abandono. No entanto, os ciclistas rivais se unem quando qualquer um deles ameaça abandonar. Resistir é voltar a começar.

Com o hockey – esporte que Barthes menos conhecia – aparece uma definição do esporte, movimentada pela constatação de que, por ser praticado no gelo, o hockey é o mais rápido dos esportes pedestres: “o esporte é este poder de transformar todas as coisas em seu contrário” (p. 59). E no parágrafo seguinte, Barthes sugere uma idéia de nação nada essencialista, com uma ênfase na matéria: “O que é um esporte nacional? É um esporte que surge da matéria mesma de sua nação, isto é, de seu solo e de seu clima”. (p. 59) Para Barthes, é da própria velocidade e da característica ofensiva do hockey – neste caso, muito mais do que o futebol, lido por Barthes segundo a metáfora do teatro e a imagem da multidão – em que o prazer do ataque justifica todos os riscos, em que até mesmo o goleiro abandona sua trave para atacar, é exatamente disso que surge sua permanente ameaça de ilegalidade: o escândalo esportivo. Os atletas do hockey se agridem explicitamente quando a tênue barreira do esporte, levada a seu absoluto limite, encontra a vida.

Pode-se dizer, enfim, que a pergunta chave não é exatamente a que Barthes realiza na abertura do texto: o que é o esporte? – mas outra, que enfatiza não apenas o conteúdo, mas principalmente a sua relação com algo que podemos chamar de força ou motivo do esporte, e que reafirma finalmente o caráter poético da abordagem barthesiana: como é o esporte?

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Mito e linguagem
(5 fragmentos de Furio Jesi)


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.