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Las vueltas de
César Aira

de Sandra Contreras

Rosario:
Beatriz Viterbo Editora, 2002


A lebre e a tartaruga

por Victor da Rosa

Las Vueltas de César Aira, de Sandra Contreras,é provavelmente o livro mais decisivo sobre o escritor argentino. Publicado em 2002 pela editora Beatriz Viterbo, mas ainda inédito no Brasil, o livro tem sua origem na tese de doutoramento de Contreras (defendida na Universidade de Buenos Aires um ano antes) e conquistou pelo menos um mérito nestes dez anos de existência: pautar grande parte dos debates em torno da obra de César Aira. Seja como for, o livro faz por onde.

“Las Vueltas”, imagem que funciona como síntese da análise de Contreras, na verdade é uma espécie de constelação de conceitos. Antes de qualquer coisa, “las vueltas” deve ser lido como indicação de um traço barroco na literatura de Aira, ou seja, como delírio mesmo, segundo a epígrafe que aparece já nas primeiras linhas do ensaio: “Yo estaba en un delirio constante (...)”, diz uma das narradoras autobiográficas de Aira – “la niña Aira” – em Como me hice monja. Contreras abre seu ensaio sugerindo que o mecanismo que funda o universo de Aira consiste justamente em “su ritmo febril de invención”. Nesse caso, além de se referir ao delírio, nascido inclusive da velocidade alucinante de cada relato, a fórmula quer nos lembrar também “del ritmo casi ininterrupto” de publicações: média de dois livros por ano, chegando às vezes a três ou quatro.

Em sentido mais literal, Contreras se refere também a uma “vuelta del relato”, um dos temas, aliás, predominantes de sua análise, quer dizer: “la recuperación para el relato de una potencia narrativa.” Mas uma volta do relato depois de quê? A autora não hesita na resposta: “(...) todo indica, claramente, que se trata de una vuelta al relato después de la crisis de la forma clásica del relato que la narrativa argentina, desde mediados de los años 60, expresó en la reiteración de una pregunta fundamental: ¿como seguir contando?”. Para Contreras, no entanto, a chave de leitura dessa volta de Aira ao relato não acontece via pós-modernismo, pois não se trata de “una mera recuperación de la amenidade de la intriga”, e sim pelo caminho das vanguardas clássicas: Marcel Duchamp, Raymond Roussel e surrealismo.

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É na noção de “relato” que a análise de Contreras investe sua maior energia, pois é aí que a literatura de César Aira, segundo sua leitura, oferece as maiores provocações. No primeiro capítulo, portanto, a partir das idéias de exotismo e viagem, quando analisa principalmente La Liebre, livro publicado em 1991, Contreras trata de uma “genealogia del relato”. Neste caso, é através da viagem, de sua experiência e sua própria estrutura – portanto, do encontro com o exótico – que toda a narrativa começa. “La estrutura misma del viaje ya es narrativa”, escreve o próprio Aira em um ensaio sobre o assunto. Na verdade, o buraco é um pouco mais embaixo. César Aira está rezando a cartilha vanguardista quando afirma também que os grandes artistas do século XX – Duchamp, Roussel, etc – não fizeram obras, e sim inventaram procedimentos para que as obras pudessem ser realizadas sozinhas.

De fato, a viagem será uma das inúmeras máquinas de procedimento que o escritor quer construir: ela oferece um começo e um fim, mas também um “narrador-tradutor”, como faz questão de enfatizar Contreras, além de uma possibilidade de aventura; afinal, a literatura de Aira lida com estereótipos. O que nos faz concluir que a viagem é um gênero do qual a literatura de César Aira se apropria – e perverte, naturalmente – como se fosse um ready-made. Mas também há outros. Contreras chega a se referir a uma canibalização de todos os estilos do passado. Seja como for, a estratégia consiste sempre em mostrar plenamente os estereótipos – e o exotismo não será outra coisa senão um estereótipo – para que tal reconhecimento seja transformado em invenção. Em La Liebre, por exemplo, a trama acontece a partir de dois personagens que são, antes de tudo, tipos (extremos) de identidade cultural: “o inglês civilizado” e “o índio bárbaro”.

A presença de “gêneros menores” na literatura de César Aira será fundamental para o entendimento da noção que provavelmente melhor define sua “ars poética”, a de “literatura mala”. Tanto os núcleos básicos de telenovela (a aventura, o amor) quanto coisas ainda piores, digamos assim, como é o caso dos filmes de monstros e jogos de videogame, são recorrentes na literatura do escritor. De outra maneira, fazer “literatura mala” é escrever com imperfeição, pressa. Contra a escritura perfeita de Borges, está a imperfeição de Arlt. La guerra de los gimnasios, por sua vez, é descrita por Contreras, muito precisamente, como “o melhor estilo de Mortal Kombat”. Em todo caso, sua fórmula diz exatamente o oposto daquilo que José Juan Saer recomenda aos escritores: “Trabalho, tempo, vigilância.”

Um dos méritos da análise de Sandra Contreras, aliás, é sua exaustividade. Além de enfrentar praticamente todos os títulos de César Aira publicados até o ano de 2002, entre ensaios e narrativas, o que já não seria pouco, o livro de Contreras também tem o mérito de posicionar a obra do escritor – sempre de maneira crítica, ou seja, mostrando suas filiações, mas principalmente sua falta de obediência – no contexto de toda narrativa argentina. Em outras palavras, trata-se de um ensaio, além do mais, erudito. De Borges a Ricardo Piglia, passando por Roberto Arlt, Macedônio Fernandez, Manuel Puig, Osvaldo Lamborghini e muitos outros, entre mestres e dissidentes, César Aira aparece também como um crítico que se posiciona a respeito de sua tradição; um exemplo bastante ilustrativo é quando o autor explica porque Respiração Artificial é o pior romance de sua geração.

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A literatura de César Aira vive do desejo de seguir adiante, avançar. Nesse sentido, aliás, não se trata mais de “una vuelta”, e sim de um avanço ininterrupto. Seu desafio, de outra maneira, parece ser justamente o de usar tudo que lhe cai na frente, sem medir muito as conseqüências. Trata-se, afinal, de uma estratégia para continuar narrando. Como uma máquina, o mais importante é a construção de um procedimento que não pare nunca de funcionar. O gênero, nesse sentido, qualquer gênero de discurso, só aparece para que seja abandonado depois. Seu uso, em todo caso, é puramente instrumental. Sobre isso, o próprio Aira afirma em sua Ars Narrativa, com alguma ironia: “Los géneros no tienen más función para el escritor que darle algo concreto que abandonar; nada más práctico y fácil de abandonar que un género.” Nasce daí uma escrita que, na aparente falta de revisão, ganha feição de improviso; assim como nasce também um número desvairado de publicações.

Sandra Contreras dedica um capítulo inteiro de seu livro, o terceiro, para analisar o que chama de “los mecanismos del continuo”. De certa maneira, os mecanismos de continuidade que a literatura de Aira acaba atraindo são conseqüências naturais de seu desejo ininterrupto de avanço. A iminência do fim – um estado de ansiedade do relato por acabar rápido – é um destes mecanismos. César Aira já foi bastante criticado pelo fato de seus livros terminarem de maneira precipitada, sem aquele recurso conhecido na poesia como “chave de ouro”, crítica que Aira responde (sempre ironicamente) como um desejo de começar logo um livro novo. Em certo momento, aliás, Contreras demonstra a maneira como a crítica literária argentina se divide quando Aira leva suas loucuras às últimas conseqüências; pois não se trata apenas de frivolidade, mas de uma frivolidade total, absoluta. Seja como for, se não há desenlace que atribua sentido ao todo, parece não haver argumento que organize o relato, ou seja, um sentido final, e sem dúvida é disso que se trata.

Outro destes mecanismos, também analisado por Contreras, será a aceleração do relato. A velocidade não consiste simplesmente em uma rápida travessia, escreve Contreras de maneira precisa, e sim na fantástica aceleração que inclusive “altera la natureza del objeto.” A quantidade de ações disparatadas na mesma página, por exemplo, confere à literatura de Aira um ritmo de aventura na versão mais folhetinesca. Histórias menores nascem de histórias maiores e as histórias maiores, por sua vez, são abandonadas sem qualquer resolução. Tal procedimento privilegia o processo, não o produto; solicita a continuidade, que deve surgir de uma exigência constante de improvisação, e não a interrupção. O grande artista, para César Aira, é aquele que improvisa.

Próximos textos:

Notas para a reconstrução de um mundo perdido (XXVI): O pânico, o aplauso e o chefe

Notas para a reconstrução de um mundo perdido (XXVII): O Homem e a sua Alma

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.