outros números

resenhas

dicionário crítico
(verbetes)

seção arquivo

informativo

contato
(e colaborações)




XXVII - Notas para a reconstrução de um mundo perdido
O Homem e a sua Alma



O conceito de Alma é derivado do Ódio. Os homens começam a ter alma somente no momento em que o Ódio aparece, isto é, no momento em que o homem descobre a semelhança existente entre a sua imagem e a imagem do próximo. Antes desta Descoberta o homem não tinha Alma e por desconhecer a semelhança com o próximo não o imitava e não o odiava. A imitação do próximo, uma manifestação de auto-defesa e de agressividade, marca o inicio da formação de uma imagem igual à imagem do homem que o representaria em todas as circunstâncias, Esta imagem é a conseqüência do homem se reproduzir em espelho os mesmos gestos e as mesmas vocalizações do adversário para não se encontrar em situação de inferioridade e poder enfrentá-lo com as mesmas armas e destruí-lo. Tão bela manifestação de Ódio marca o inicio do conceito de Alma que é também o início dos laços gregários que conduzirão ao Homo Socius.

O fato etnográfico da Alma ter a mesma forma do homem e de ser ela uma “doublage” do homem ou mesmo um monumento ao homem coloca o seu início no momento pantomímico em que o homem descobre as características do seu próprio corpo, isto é, no início do período da Defesa Agressiva.

O conceito de Alma proveniente do exercício da imitação, guiou o homem rumo à criação do seu mundo artístico através dos monumentos que eram pantomimas paradas para memorizar os seus feitos posteriormente através dos ideógrafos e hieróglifos e a escrita. Foi o conceito Alma-monumento que levou o homem a aprender a escrever e por conseguinte o capacitou a transmitir os seus feitos silenciosamente à distância e sem uma representação teatral visual.

O aparecimento da Alma é um indício desse futuro silêncio na transmissão dos feitos pela escrita. Imagem que se desloca com uma pose fixa conservando o seu todo imóvel, a Alma raramente fala e quando o faz é por intermédio de outros. O aspecto silencioso da Alma tem raízes profundas e como veremos mais adiante se prende à mudança do apetite no homem.

Por ser o conceito de Alma uma imagem do homem, a noção de Alma só poderia surgir da descoberta dessa imagem e conteria na sua essência as características do homem na época da descoberta. Por conseguinte a Alma não abrange toda a evolução do homem, mas apenas uma pequena parte dessa evolução: é uma condensação de um período recente que se inicia com o advento do Ódio.

A idéia generalizada de que o homem tinha medo da morte é falsa e, por conseguinte, é falsa também a idéia de que a noção de alma surge do medo da morte. O conceito de Alma é um fenômeno pantomímico de imitação gerado simultaneamente com o Ódio. As manifestações de medo da morte são posteriores à criação da imagem da alma. Este medo deve ser rotulado mais como um receio de perder um companheiro, pois o homem em pleno período do Ódio e já um animal gregário receava ficar só.

Na criança o medo se desabrocha entre sete meses e dois anos, permanecendo posteriormente como resíduo. Da idade zero a sete meses, a criança não experimenta sensação de medo.

Nem a criança, nem o alienado, nem o primitivo – post-tipos do homem do Começo – receiam a morte; todos se atiram à luta e desbragadamente e ferozmente ao entrar no período do Ódio.

A gesticulação e a mímica desses elementos visam proteger o aparelho digestivo e se ligam à proteção e satisfação da ponta do aparelho digestivo que é o rosto. A função básica, fisiológica e muscular do rosto é a de ingerir alimentos. O próprio beijo do adulto e a sucção do dedo pela criança é aquilo que resta de uma época em que o homem devorava o seu semelhante e chupava o seu sangue, resíduos ainda largamente aplicados sobre a mulher que continua ainda sendo o seu adversário de luta de Sexos.

Sendo a alma uma função direta de um processo de imitação tendo como conseqüência a elaboração de uma imagem igual a imagem do homem, ela só poderia aparecer no momento em que as condições sensoriais e anímicas do homem o permitissem. Jamais poderia essa elaboração se processar durante um período de Medo, pois a emoção do meio em virtude da retratação e do isolamento provocados no indivíduo tornava difícil e quase impossível a imitação, deste modo impedindo o aparecimento da imagem-alma.

A emoção de Medo consignada a um período determinado fixava limites e fronteiras no comportamento do homem esse comportamento não podia se alterar sem que se alterasse também a força básica emotiva. Havia necessidade de um motivo fundamental preponderante para alterar todo o comportamento do homem e para promover a transição do Medo para o Ódio e permitir a elaboração da imagem da alma.

O motivo preponderante é traçado e indicado pelo próprio comportamento do homem. Dá-se uma modificação no apetite do homem e esta modificação é marcada pelo proferimento de consoantes como manifestação de proteção do aparelho digestivo. Ao entrar no período de Defesa Agressiva e por conseguinte ao entrar em contato com o seu semelhante recém-descoberto, o homem que até então permanecera de boca aberta proferindo o Monólogo da Fome, passa a fechar a boca e a proferir consoantes em proteção ao aparelho digestivo que se encontrava em perigo e passa a proferir Diálogos com o seu adversário. O primeiro gesto do homem de boca aberta, frente ao seu adversário e em adiantado estado de Ódio ao descobrir a suma imagem, é o de fechar a boca pronunciando a primeira consoante e protegendo a entrada do aparelho digestivo. Ambos se encontravam de boca aberta, um ponto pantomímico de igualdade, e ambos protegem o aparelho digestivo ao mesmo tempo pelo fechamento da boca e ambos pronunciam simultaneamente a primeira consoante. Há uma mudança no apetite. Alguma coisa importante acontecera com o tubo digestivo do homem cuja abertura ingerente a boca se encontra obstruída. Os sons emitidos por esse órgão se alteram.

A consoante é o som característico que acompanha a formação da Alma. O aparecimento das consoantes como manifestação de novo apetite proveniente do Ódio incitado pela elaboração da imagem dá ao conceito de Alma uma feição de silêncio. Um silêncio produto de um novo apetite e da proteção outorgada ao aparelho digestivo.        


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 28 de julho de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



<< XXVI: O pânico, o aplauso e o chefe Índice das Notas XXVIII: A dupla personalidade >>


Textos anteriores:

A lebre e a tartaruga

Notas para a reconstrução de um mundo perdido
(XXVI): O pânico, o aplauso e o chefe


Edicão integral:
HTML | PDF

 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.