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XXVIII - Notas para a reconstrução de um mundo perdido
A dupla personalidade



A noção de Dupla Personalidade proveniente de um ser formado por duas imagens, cada uma com emoções diferentes, as duas representando a mesma pessoa, é um produto do processo de imitação do homem pelo homem e consequentemente só teria surgido com o início desse processo de imitação. Por conseguinte a Dupla Personalidade só aparece com a Descoberta da Imagem e com o início do Diálogo. Antes do processo de imitação não havia Dupla Personalidade. Durante todo o período esquizofrênico de Defesa Passiva o homem não tinha Dupla Personalidade porque não havia imitação. O ser se desdobra em Personalidade e Dupla Personalidade somente no início do Ódio. As imagens de que se compõe o ser com Dupla Personalidade são imagens que possuem característicos bem marcados e se apresentam uma em oposição á outra, se apresentam em estado de luta e Ódio. Uma das imagens do ser com Dupla Personalidade, a imagem imitada e repetida, é a imagem gerada no início do Ódio e da Defesa Agressiva que é o início da imitação.

Conquanto a Dupla Personalidade tenha sido formada no início do período do Ódio e existe como conseqüência, um novo comportamento no homem, o seu conteúdo exibe a vida do período anterior do Medo e contém os atributos do Sonho, da Solidão e do mundo tenebroso do início do Crime. A Dupla Personalidade só aparece como conseqüência antagônica da formação da Personalidade no início do Ódio. Ela se encontra em forma latente e é despertada pela Personalidade em ação.

Examinando o conteúdo de cada uma das imagens do ser com Dupla Personalidade encontramos que uma das imagens contém o tenebroso e silencioso mundo do início do Crime e do Sonho personificado no período esquizofrênico de Defesa Passiva enquanto que a outra imagem contém o comportamento do homem perante a sociedade que o contorna, isto é, uma atitude do mundo gregário que só poderia ter aparecido quando o homem entra em contato com os seus pares no início da imitação e do Ódio do período de Defesa Agressiva.

Portanto cada uma das personalidades representa um certo período distinto na evolução do homem e conseqüentemente cada uma dessas personalidades representa uma fase na formação emotiva do homem, o que mostra que a formação emotiva do homem se processou por períodos distintos e diversos, o homem aparecendo em certa época somente com uma parte das emoções por ele conhecidas, a outra parte das emoções surgindo posteriormente como conseqüência de certos acontecimentos.

Esses acontecimentos importantes que provocaram a eclosão de novas emoções com um novo comportamento e o aparecimento sucessivo, uma após a outra, das imagens da Personalidade e da Dupla Personalidade, são a satisfação da Fome e a satistação do Frio, conseqüências da Descoberta da Imagem e do início do Ódio, ambos apontando para o início gregário do Homo-Socius. O Homo-Socius é um produto da fome; é uma instituição para impedir a recorrência da fome.

A Fome e o Frio proveniente da fome, teriam continuado se não houvesse acontecido a Descoberta da Imagem do Semelhante e o início do Ódio. Observa-se que a sensação de frio se encontra de certo modo ligada à fome quando a falta de alimento e a fome provocam uma sensação de frio no organismo, idêntica à baixa temperatura exterior. Uma correção da temperatura do corpo ou por meio de alimentos ou por meio de agasalhos, faz cessar as reações de protesto do organismo.

Esta interrupção nas reações de protesto de um organismo submetido a um estado estimulante de frio e de fome é observada com freqüência na criança. A criança recém-nascida pára de chorar quando envolvida em panos quentes.

O dramático aparecimento da Dupla Personalidade no espetáculo diário do indivíduo é considerado a primeira fase da loucura futura, do desequilíbrio e da loucura a vir, desequilíbrio em relação ao homem gregário, mesmo porque o material emotivo apresentado pela Dupla Personalidade seria um material pertencente ao período esquizofrênico da Defesa Passiva.

A Dupla Personalidade é a parte sonhadora, lírica, criminosa do indivíduo. Na maioria dos homens essa Dupla Personalidade não se manifesta. É um material proveniente de um mundo longínquo do Medo quando os homens não tinham alma e se associavam temerosos com a vida vegetal e a de um mundo mais antigo ainda onde os homens não tinham medo.

A Dupla Personalidade oferece à Personalidade do homem gregário: força viril, solidão, crime, potência sobre todas as coisas, atributos telúricos da vida e poderes cobiçados. Oferece enfim aquilo que fez Nietzsche exclamar: “Eu acreditava que a sombra do homem fosse a sua vaidade”.

Os desejos secretos do homem que exerce a rotina diária pertencem aos domínios da Dupla Personalidade. Geralmente a obra do artista é um produto da sua Dupla Personalidade a menos que seja uma mera imitação de outros e um produto do Ódio. A imagem que orienta a obra do artista é anterior ao período de Ódio e de imitação; é a imagem do período do Sonho e do início do Crime.

A Solidão é o meio ambiente apropriado ao cultivo e manutenção da Dupla Personalidade; sem dúvida são os restos da solidão do mundo esquecido e despovoado do Começo. Musset e Maupassant apresentam a Solidão como sendo a própria Dupla Personalidade. A Dupla Personalidade se associa à imagem do chefe que é gerada por um processo de imitação. As noções de Dupla Personalidade aparecem após o conceito de chefe ou caudilho. A dupla personalidade do indivíduo é a personalidade telúrica do chefe que é imitada ou do chefe abstrato, é a faceta poderosa do indivíduo que aparece para contrabalançar sua personalidade normal. Por sua vez a personalidade do chefe é uma com característicos oníricos, o chefe era o homem mau surgindo das profundezas da raça e do grupo, que possuía o dom de adivinhar, era um homem primitivo, um homem do Começo, um inspirado nas forças telúricas capaz de oferecer estabilidade ao grupo. Isto faz com que a Dupla Personalidade seja localizada como imagem do Começo. É a vida experimentada pela Dupla Personalidade do homem, a que realmente interessa.


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 4 de agosto de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.