outros números

resenhas

dicionário crítico
(verbetes)

seção arquivo

informativo

contato
(e colaborações)




XXIX - Notas para a reconstrução de um mundo perdido
A dupla personalidade e a alma



O advento do importante fenômeno de Chefe, uma provocação do Ódio, marca o advento da formação de um modelo cuja Personalidade é a [de] ser repetida e imitada; marca a formação de uma Dupla Personalidade com os característicos do Chefe, característicos cobiçados, e este modelo será a Alma dos elementos do grupo. Com o início do espírito coletivo consequente do Ódio [,] a Alma que é uma formação do Ódio torna-se também alma coletiva que é a imagem do Chefe; uma imagem telúrica com raízes profundas no mundo vegetal.

Esta importante imagem do chefe se encontra localizada em todas as iconografias e em todas as lendas de criação do homem. Etnograficamente o chefe supremo[,] que é o criador, produz o homem que é a sua própria imagem e o trata como o seu inimigo, aplicando sobre ele o Ódio que tão bem marca o fenômeno da Descoberta da Imagem. Todas as criações do homem conhecidas são caracterizadas pelo Ódio entre o Criador e o homem. Etnograficamente o homem inicia sua vida no período do Ódio, desconhecendo completamente todo o período anterior do Medo; assim apontam todas as lendas da Criação do homem. Contudo nas lendas da Criação dos deuses são encontrados vestígios do antigo período do Medo.

O uso da imagem do Chefe como alma do grupo-elemento permanece enquanto o grupo-elemento imita o Chefe ou atributos do Chefe abstrato.

Quando Dionísio em frente ao espelho cria o mundo à sua própria imagem ele exibe o fenômeno de Descoberta da Imagem e se comporta como Narciso e elabora para o mundo uma fórmula de progresso e de Ódio. Narciso, Dionísio, o Adão neoplatônico e gnóstico e outros são os mesmos fenômenos.

É curioso e esclarecedor este fato lendário do homem só iniciar a sua existência quando ele se apresenta como uma reprodução de uma imagem igual à do Criador e isto somente no momento em que existe o Ódio; não aparecendo etnograficamente em todo o período anterior. Este mito-etnografia do Começo do Homem é sem dúvida um resíduo de acontecimentos reais que se processaram pelo mecanismo por mim exposto nas minhas teorias de imitação e é uma demonstração bem certa de que a Descoberta da Imagem se deu a um certo momento e que esta Descoberta se opera simultaneamente com a eleição de um Chefe-modelo. Toda esta mito-etnografia do Criador confirma a minha teoria sobre a Descoberta da Imagem.

As noções de alma coletiva identificam e se confundem com a pessoa do Criador que se torna um modelo-prestígio para a imitação.

Por sua vez, sendo o Criador o detentor dos principais atributos telúricos provenientes do período anterior à criação etnográfica do homem, o período do Medo, é ele o expoente exato da Dupla Personalidade do homem e por conseguinte é uma representação da alma do homem. A Dupla Personalidade é a alma do homem.

A extensão de tempo entre a Criação etnográfica do homem e a Criação ou início de fato representa o período esquizofrênico do Medo e mais um período que antecedeu ao medo e que seria um período dos homens sem medo.

A tendência que tem o homem de só aceitar a ideia de um Criador repetindo a sua imagem no homem mostra a maneira forte pela qual o processo de imitação influenciou toda a vida do homem a ponto dele só conceber um Criador situado na mesma posição zoológica da sua pessoa, isto é, um ser ao qual ele teria possibilidades de enfrentar em luta e exibir Ódio, imitando-o e mostra quão recente é esta escolha de Criador, um criador que não exibe na sua imagem nenhum sintoma de evolução mas se apresenta em aspecto como o homem de hoje.

As ligações existentes entre as noções de alma e a imagem são percebidas entre os povos primitivos por meio da linguagem antiga. Entre os Abipons a palavra Loakal significa ao mesmo tempo: sombra, alma, imagem e eco. Percebemos a maneira pela qual a palavra Alma é um desdobramento de duas imagens ou de dois sons em forma de eco e percebemos a ligação que existe entre esta dualidade e a Dupla Personalidade. Para o selvagem as apresentações da sombra, da imagem no espelho, da imagem na água e do retrato são representações da alma.

O folclore apresenta a Dupla Personalidade que é a alma com a natureza de um poder viril; perder a alma, para o primitivo, era o mesmo que perder o poder viril ou, seria, o mesmo que perder uma potência igual à do semelhante que é o inimigo, produzindo-se assim um sério atentado aos sentimentos de gregarismo que são um produto do semelhante. A proteção que o primitivo vinculava à imagem refletida na água ou no espelho é a mesma proteção à alma e é a mesma proteção ao semelhante. A destruição pelas feras e monstros aquáticos da imagem refletida não somente é a destruição da alma e de sua Dupla Personalidade mas também é a destruição do seu igual e do seu semelhante[,] do seu companheiro e de uma parte de sua própria pessoa.

Esse semelhante era escasso e disperso num passado antigo e a necessidade de protegê-lo era grande. Quanto mais remota a posição do homem tanto maior era essa necessidade de proteção ao semelhante ou à sua alma. As noções de alma seriam mais intensas nos períodos agudos de Ódio. Possivelmente as noções de alma e Dupla Personalidade seriam mais intensas no começo da formação da imagem do que agora porque no começo a imagem e a personalidade eram débeis e fracas e teriam mais necessidade de proteção do que agora.

O costume de considerar a imagem no espelho como uma reprodução da alma e o hábito de cobrir os espelhos com panos na casa de um morto a fim de impedir que a alma do morto permanecesse na casa, mostra o poder viril da imagem e da Dupla Personalidade.


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 11 de agosto de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



<< XXVIII: A dupla personalidade Índice das Notas XXX: Nas fronteiras do bem e do mal >>


Texto anterior:

Sarau
(Eduardo Sterzi)

Próximos textos:

Notas para a reconstrução de um mundo perdido

(XXX): Nas fronteiras do bem e do mal

(XXXI): Nas portas do país do sonho

Edicão integral:
HTML | PDF

 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.