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Sarau
Eduardo Sterzi

O SOPRO apresenta texto de Eduardo Sterzi sobre a exposição Sarau, de Veronica Stigger, em cartaz na Casa do Brasil em Bruxelas (Bélgica), de 14 de dezembro a 1º de fevereiro. O texto está sendo distribuído na exposição e posteriormente integrará o catálogo da mesma.

Existem, nos dias que correm, muitas exposições sobre literatura, mas poucas exposições de literatura. Sarau é uma exposição de literatura. Frente a ela, talvez devamos nos perguntar qual é a intensidade específica de se expor textos literários na forma de intervenções visuais e sonoras numa galeria de arte. Porém, precisamos notar, antes de tudo, que, para Veronica Stigger – que, além de escritora, é também historiadora da arte especializada nos períodos moderno e contemporâneo –, qualquer oposição entre o domínio literário e o domínio artístico há muito deixou de ser óbvia.

Desde o seu primeiro livro, O trágico e outras comédias, de 2003, ela parece querer recuperar e levar adiante, a seu modo e com atenção ao seu tempo, aquela ambição que um dia foi romântica, e depois modernista, de fazer a literatura extrapolar os âmbitos tradicionalmente reservados a ela, de modo a se confundir com a vida. Isto é: sua obra, desde o início, parece aspirar a uma presença física no mundo – a uma consistência material e a um impacto estético – que os textos literários, em suas esferas convencionais de circulação, não têm, senão em segundo plano ou metaforicamente. Este é o sentido da ideia de teatro presente já nos títulos de O trágico e outras comédias e de Gran Cabaret Demenzial, seu segundo livro, de 2007. Mas é também o sentido de sua atenção obsessiva aos gestos dos personagens, complementar a esse interesse pelo modelo teatral (em que os personagens se fazem corpos, e os corpos, ação). Tal atenção se acentua a partir do seu terceiro livro, Os anões, de 2010. Não por acaso, é também aí que o caráter de objeto do livro ganha relevância artística. Os anões apresenta-se ao leitor como um bloco negro compacto, quase um tijolo de papel, formado por folhas extremamente espessas, semelhantes às dos volumes para crianças. Não apenas um livro-objeto e um objeto de arte, mas um artefato que exige do leitor toda uma nova gestualidade para que a leitura se faça. O simples ato de folhear o livro deixa, aí, de ser simples: o peso é inesperado para um volume com textos tão diminutos; as páginas resistem a serem abertas; o tato faz-se, em sua perscrutação, tão importante quanto o olhar.

Passo quase lógico dessa trajetória foi a exposição que, nos últimos meses de 2010, reuniu, nos tapumes de um prédio em construção, em São Paulo, um conjunto de placas de madeira com reproduções de frases alheias. Estamos aqui na esfera do que a autora chamou de uma “arqueologia da linguagem do presente”. Um precedente célebre é o Dictionnaire des idées reçues no qual Flaubert registrou os grandes lugares-comuns da sociedade francesa de sua época. Porém, aqui, o experimento de uma escrita do alheio é reproposto à luz da noção duchampiana de readymade, assim como em consonância com uma espécie de tradição subterrânea da literatura brasileira, que, de Oswald de Andrade a Francisco Alvim, mas incluindo diversos outros escritores, destitui a voz autoral de sua autoridade (o autor não é mais, no sentido forte da palavra, autor) para encontrar a poesia nas vozes dos outros. “A gente escreve o que ouve – nunca o que houve”, anotou Oswald, o mesmo Oswald que, no Manifesto antropófago, dissera: “Só me interessa o que não é meu”. Significativamente, ao transformar as placas em livro, com o título de Delírio de Damasco (2012), Veronica Stigger adotou a primeira frase como epígrafe.

Uma nova versão da instalação de 2010 encontra-se aqui sob a denominação de Pré-histórias. Podem ser vistos também como readymades, mas readymades desde o início ficcionalizados, ou ficções que simulam ser readymades (e não caberá toda a literatura, em alguma medida, nesse intervalo ambíguo entre palavras alheias e palavras próprias, assim como entre realidade e invenção?), outros trabalhos expostos nestas salas, como Você conhece a cocada mole?, Minha novela, Passo Fundo e Imagem verdadeira. Qual a verdade da literatura? – a autora parece se perguntar, e nos perguntar, em cada uma dessas peças. Saberíamos dizer onde termina o real e começa a ficção? Não é a ficção uma das formas do real, talvez a mais depurada ou a mais complexa, provavelmente a mais inquietante? O que há do lado de fora da Caverna, que foi outrora a do mito platônico, mas aqui talvez seja algo como uma alegoria do texto literário? Mas, sobretudo, que agitação é esta dentro dela?

Expressivamente, esta exposição se chama Sarau. Por meio da designação um tanto anacrônica, que faz um aceno às antigas reuniões de escritores para a leitura em voz alta de seus textos, Veronica Stigger parece querer contestar qualquer fixidez porventura inerente à ideia de exposição, ao mesmo tempo em que evoca e invoca algo como uma comunidade de fantasmas. Sonha-se aqui com uma dimensão não só material, mas performativa, que se concretiza na profusão de vozes. “Babel feliz”, ainda, como quis Roland Barthes, definindo a literatura – ou, ao menos, certa literatura.


Próximos textos:

Notas para a reconstrução de um mundo perdido

(XXIX): A dupla personalidade e a alma

(XXX): Nas fronteiras do bem e do mal

(XXXI): Nas portas do país do sonho

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.