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XXX - Notas para a reconstrução de um mundo perdido
Nas fronteiras do bem e do mal



A coisa mais enfática sobre o conceito do Bem e do Mal é a semelhança existente entre os conteúdos do Bem e do Mal e respectivamente os conteúdos da Personalidade e da Dupla Personalidade e é também o fato preponderante consequente, do Bem se originar da Personalidade e o Mal da Dupla Personalidade.

O Bem e o Mal aparecem, pois, como consequências de dois comportamentos do homem: um o atual, posterior à Descoberta da Imagem e outro, antigo, pertencente ao período do Medo que se encontra antes do início da imitação.

O Bem surgindo com a Descoberta da Imagem do Semelhante é um produto do Ódio que provoca o início da formação da Alma ou a formação da Dupla Personalidade e do conceito do Mal. É esse instinto gregário do Bem que provoca o aparecimento em cena aberta do conceito do Mal proveniente do passado imediatamente anterior.

O Mal é despertado para combater e destruir o Bem, dando novo vigor ao homem, mesmo porque o Bem sendo um modelo-prestígio aceito para a imitação e repetição, torna-se um reflexo condicionado e consequentemente estabiliza o homem não o conduzindo a nenhum lugar mas, pelo contrário, firmando o conceito “homem sem rumo”, homem a caminho da eternidade pela repetição.
Sendo o Bem uma aplicação sobre um semelhante, é claro que o Bem só poderia ser o produto dos primeiros contatos do homem [com] o seu semelhante, um produto do Ódio, da luta e da Defesa agressiva, um produto essencialmente gregário e social. Nunca o Bem poderia existir num período de isolamento, de disfarce, de solidão e de Fome, como acontece no período da Defesa Passiva. O isolamento, a solidão, o medo e o disfarce, condições que produziram o Monólogo da Fome composto das primeiras vogais e que é o início da linguagem, são condições que provocaram o advento do Mal e a formação da Dupla Personalidade ou da Alma do homem.

Sendo o Bem uma função da imitação e da luta proveniente do contato com o semelhante e por conseguinte sendo que o Bem só pode existir dentro de um mundo gregário, um mundo de contato do homem com os seus pares, um mundo do Ódio, conclui-se que fazer o Bem é aceitar e executar o comportamento imposto pelo Chefe que é o principal produto do mundo gregário. A imitação ao Chefe ou às ideias abstratas que formam uma dominante que é o chefe leva ao conceito de Homo-socius, um ser com um comportamento estereotipado que pela sua natureza se transforma em reflexos condicionados.

A personalidade do homem formada após a Descoberta da Imagem e uma manifestação do Bem quando bem marcada, é constituída por reflexos condicionados que se repetem e formam a rotina diária do comportamento do homem e dos seus conhecimentos. Aparecendo o Bem somente com o inicio do Ódio e da Descoberta da Imagem é ele uma consequência da satisfação e da mudança do apetite no homem, é uma consequência da situação de Fome alterada e da tentativa de eliminar a Fome pela luta, pelo Ódio e pelo gregarismo.

O antigo fato etnográfico do homem comer o seu Chefe supremo ou o seu Criador e isto quando se encontra em estado de Bem é uma demonstração da influência do apetite na formação do conceito de Bem e esta influência do apetite se processa como manifestação social e gregária.

O conceito de Mal se encontra localizado em pleno período da Fome, período de solução, de retração e de insatisfação, antes do homem ter contato com o seu semelhante pela Descoberta da Imagem e antes de ter o seu apetite alterado pela satisfação. O Medo e a esquizofrenia se apresentam correlatos com o estômago vazio. A ministração de alimentos a um homem com medo diminui a sensação do medo e talvez isso explique o hábito antigo de fornecer alimentos aos mortos, hábito este que teria como intenção básica eliminar a sensação de medo e fome em que se encontra a alma, impedindo desta maneira que a mesma praticasse atos de terrorismo sobre os vivos.

Certos povos, tais como os das ilhas Fiji e os do Greenland, concedem duas almas a uma só pessoa. Uma é a alma tenebrosa e má que vai para o inferno e que naturalmente se identifica com a paranoia latente e com as predisposições patológicas pertencentes ao mundo do Começo, predisposição que era comum a todos e a outra alma [,] uma imagem límpida e pura, a imagem refletida na água e que seria uma personalidade evoluída. A concepção desses povos se traduz em Dupla Personalidade que é o mundo do Mal e do Medo e Personalidade que é o mundo do Bem e do Ódio.

O conceito de Aristóteles sobre a Alma, mostrando um fenômeno evolutivo da alma vegetal para a alma animal e em seguida para alma racional, na realidade se resume em duas entidades: uma vegetal e a outra animal, pois Aristóteles concedia raciocínio aos animais.

Aristóteles insinuava assim duas imagens que se apresentavam uma depois da outra: a alma vegetal que se identifica com o Mal e a Dupla Personalidade, uma representação do período do Medo onde o homem se refugiava em Defesa Passiva disfarçado em vegetal e a alma animal que se identifica com a Personalidade e com o Bem, uma representação na qual o homem aparece em contato gregário com o semelhante e em estado de Ódio.

O refúgio do homem, o seu esconderijo e o seu disfarce eram o vegetal e a terra. Ao abandonar o seu esconderijo e o seu disfarce, movido pela Fome, e ao perceber a imagem do semelhante o homem altera a sua linguagem e altera o seu apetite pela satisfação, criando a sensação de Bem. Ele deixa de proferir vogais e passa a proferir consoantes.


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 25 de agosto de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.