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Tratado da Magia
de Giordano Bruno 

(Introdução, tradução e notas de Rui Tavares)

São Paulo,
Martins Editora, 2008


O precipitar da imaginação

por Leonardo D'Ávila de Oliveira

A tradução do pouco conhecido Tratado da Magia de Giordano Bruno demonstra que mesmo em um mundo em que houvesse algum paralelo entre as palavras e as coisas, a linguagem seria inexata e a comunicação impotente.

Enquanto na tradição averroísta algo poderia ser verdade para a fé e falsidade para a razão (e vice-versa), no pensamento hermético de Raimundo Lull (1235-1315), contudo, há uma grande oposição ao pensamento de Averróis motivado pela tentativa de unir o lógico ao espiritual. Seria somente com uma razão na fé que seria possível a conversão dos sarracenos ao Cristianismo segundo tal pensador catalão, o qual era muito mais fiel ao platonismo agostiniano, portanto com uma verdade única e universal, do que ao pensamento aristotélico que se difundia na Europa por influência dos árabes. Antes que o Ocidente transformasse o intuito de Lull em uma fé na razão, floresceu na renascença da atual Itália um pensamento hermético marcado por ambas concepções, sendo principalmente consolidado por pensadores como Marsílio Ficino (1433-1499), Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) e Giordano Bruno (1548-1600). Este último, o qual é sempre tido por um dos fundadores da ciência moderna, teve recentemente um de seus textos mais obscuros publicados pela Martins. Assim, o De Magia (Tratado da Magia), em edição bilíngüe (latim-português) que contou com Rui Tavares para sua tradução, pode dar ao leitor uma pequena amostra das problemáticas que inspiravam toda a literatura herege da época. Ao considerar essas duas vias, o leitor poderia, em um primeira leitura, encontrar elementos de uma tendência muito mais cristã e unitária (ainda que trinitária) da parte de Bruno, fundada principalmente em Lull. Isto porque Bruno, ao contrário de outros alquimistas, não problematiza nesta obra os erros ou os restos das próprias experiências, como as precipitações decorrentes das soluções (caput mortuum, que seria o pó que se deposita no fundo do tubo de ensaio), as deficiências dos remédios ou aquilo que subsiste aos rituais. Nem por isso todas as coisas do mundo (ou do pensamento) são maravilhosas ou se complementam. Com uma leitura mais atenta, é interessante notar como, apesar do autor descrever o funcionamento do mundo como algo unitário e conforme leis maiores, ele nem por isso chega a considerar a linguagem como dotada de exatidão. Por mais que o saber não seja pensado separado do mundo, como no binômio sujeito-objeto, existiriam afinidades, semelhanças e simpatias (ou antipatias) que demonstram oposições naturais. Além disso, a linguagem chega a ser diretamente posta à prova quando o pensador avalia a incapacidade das línguas conseguirem passar alguma plenitude de sentido, principalmente se comparadas com as mensagens e enigmas divinos que são obtidos, por exemplo, nos sonhos. A magia, no entanto, seria aquilo que liga o saber ao agir, muito próximo, assim, de Pico Della Mirandola, para o qual a magia é maritare mundus (fecundar o mundo). No entender de Bruno ela pode ser dividida em divina, natural e matemática. As duas primeiras seriam perfeitas, já a última, que lida diretamente com a natureza, seria tanto boa quanto má: ela abarcaria desde os demônios bons (anjos, serafins, etc) até os mais cruéis. Eis que, portanto, a magia abrangeria a totalidade (desde o bom até o mau), mas justamente por esta totalidade ser regida pelas mesmas leis, nem tudo é necessariamente conveniente semelhante ou passível de simpatia. Assim como a água não se mistura ao óleo, um médico não pode curar um paciente que não partilhe da mesma fé. Mais do que isto: um alaúde fabricado com cordas feitas de restos de lobo avizinhadas de cordas provenientes de carneiro não conseguiria produzir sons porque ambas as cordas se oporiam. Portanto, ao avizinhar as leis divinas das naturais para influenciar o mundo e, assim, ligar o saber ao agir, há indiscutivelmente um caráter prático da parte de Giordano Bruno. – Não como em Kant já que este pretendia teorizar definitivamente a representação, o que não pode ser associado facilmente ao hermetismo. – Os herméticos, neste sentido, não viam acumulação na descoberta, mas a constatação daquilo que já existe. O saber mágico consiste em encontrar as marcas de semelhanças nas coisas para algum propósito. Por exemplo: sabe-se que chá de nozes faz bem para curar dor de cabeça, o que está facilmente visível na semelhança entre a parte interna das nozes e a parte interna do cérebro. Vale para esta análise lembrar Michel Foucault, que no célebre As palavras e as coisas demonstrou que, na tradição hermética, as palavras, o pensamento e o mundo não necessariamente se opunham. Assim, o saber oculto se justificava por lidar com semelhanças que, longe de representar o mundo, lidam com ele, experimentam seus próprios princípios, mas sem haver algum progresso ou esperança de conhecer tudo com absoluta certeza. Para a escrita de tratados alquímicos ou de magia, a única certeza seria justamente o processo de expor as semelhanças que já existem. O saber consistiria na tradição hermética muito mais em fazer ver a união dos compostos que estaria oculta para o vulgo do que em criar novos mecanismos para a transformação do mundo. Sendo Bruno, portanto, prático à sua maneira, tanto seria possível lê-lo com relação à química ou à medicina, o que teria um considerável valor histórico, ou também pelo lado dos processos psíquicos ou da religião, o que traria algumas conseqüências psicológicas interessantes. Ao contrário de se permitir levar por tal oposição, é interessante o gesto de Marie-Louise Von Franz, discípula de Jung, a qual trabalhou com outro texto alquímico, a Aurora Consurgens, atribuído normalmente a São Tomás de Aquino. Para ela e Jung, na coletânea Misterium Coniunctionis, os textos alquímicos são experiências que estão em paralelo com o processo de individuação do homem que se civiliza. Na alquimia haveria um confronto do sujeito com símbolos gerados pelas negligências da cultura com um mundo arcano, que seria a causa da individuação. Os textos ocultos, no entanto, seriam uma forma de se reaproximar a uma conjunção entre esses dois mundos. De fato, Aurora Consurgens termina com palavras de êxtase que narram a conjunção carnal do amado com a amada (semelhante ao cântico dos cânticos) e termina com alusão ao número três, a plenitude, que pode ser pensada no triângulo homem-mulher-criança, mas a isso não se limitando. Entretanto, demonstra Giorgio Agamben em seu livro Stanze que, em vez de se pensar o pensamento hermético em termos de sutura de uma separação, o que estaria muito próximo da experiência do êxtase, pode-se pensar tanto o hermetismo como a religião como re-leitura em vez de re-ligação. Evita-se o transe ou a melancolia pela precipitação em forma escrita. Isto explicaria o porquê de tais textos que versam sobre o transe poderem ser escritos já que o transe por excelência é impossível de se por no papel. O que está em jogo, portanto, em vez de ser uma escrita do transe (o que é um paradoxo) consistiria em uma precipitação do pensamento, ou seja, uma forma de se lidar com o impossível colocando-o na poesia, na magia ou na teologia. O que se trata então é uma releitura que põe a escrita, mas não uma escrita que venha para ligar a separação entre as palavras e as coisas, mas para experimentar a própria separação. A escrita seria, assim, um veículo que proporciona um toque, uma experiência plena do mistério, mas que nunca vem para resolvê-lo. A metaforização, assim, não pode ser entendida como metáfora no sentido tradicional, mas como uma reescrita, uma mera semelhança que se encontrava apenas impensada. Isto fica bastante claro quando Giordano Bruno em seu tratado lida com o problema da comunicação com os deuses a partir da linguagem comum. Diz o autor: “É por esta razão que os deuses falam através de imagens ou de sonhos, que nós, por falta de hábito, por ignorância e pela obtusa debilidade das nossas faculdades, chamamos de enigmas; quando são estas as [verdadeiras] palavras por excelência e os próprios confins das coisas que se podem figurar. Mas, ao mesmo tempo que tais práticas se furtam ao nosso entendimento, as nossas palavras latinas, gregas ou italianas escapam também à escuta e inteligência das potências divinas, superiores e eternas, que divergem de nós em espécie – ao ponto de ser dificílimo manter trato com elas, mais ainda do que seria mantê-lo entre águias e homens! E, tal como os homens de determinado povo não podem ter trato nem comércio sem comunidade de linguagem com os homens de outro povo senão através de gestos, assim nós, com determinado gênero de divindades, não o conseguiremos senão por meio de certos sinais, selos, figuras, caracteres, gestos e outros rituais.” Portanto, o fato da imaginação, das divindades e do mundo serem semelhantes ou divergirem, mutuamente atraídos ou opostos, não significa que a linguagem seja capaz, por si só, de representar e lidar com tudo isso. Ao contrário, as semelhanças, antes de serem representadas, deviam ser experimentadas. Isto não indica de forma alguma que a magia, que a faculdade mimética das semelhanças, seja algo redentor por si só. A imaginação quando associada à matéria por um princípio ativo pode fazer surgir os fantasmas que são responsáveis pela melancolia, por exemplo. Bruno, assim, não procura entender este tipo de doença como apenas derivado da bile (muito embora fazer uma sangria pudesse ajudar), mas como algo próprio do espírito e que deveria ser combatido em suas origens. Tal combate a este mal da imaginação, no entanto, não chega a ser descrito, sendo aconselhável apenas que o paciente tenha fé. Nessa e em outras passagens o texto é uma preciosa fonte para se estudar um momento em que havia uma certa forma de se experimentar o mundo pela correspondência entre a atração dos ímãs e a atração das almas ou entre a antipatia entre lobos e cordeiros. Conforme Walter Benjamin, “pode-se supor que o dom mimético, outrora o fundamento da clarividência, migrou gradativamente no decorrer dos milênios, para a linguagem e para a escrita, nelas produzindo um arquivo completo de semelhanças extra-sensíveis.” Progressivamente, portanto, a oposição que antes havia no mundo em positivo negativo, fogo e água, passa a se fechar no mundo do texto. A releitura de Giordano Bruno, portanto, demonstra que, enquanto no hermetismo o mundo podia ser lido através das semelhanças, e era autor quem se precipitava em texto para não enlouquecer com os próprios fantasmas que a imaginação criava, na separação moderna entre sujeito e objeto, curiosamente, o autor somente pode ser a própria precipitação da leitura, o resto da solução ou o sangue derramado no ritual. E se hoje as semelhanças já não são uma forma de ler e a própria leitura dos astros ou dos metais não produz efeitos diretos nos homens, isto não significa que seja a hora de se reencontrar com a natureza ou esperar que na era de Aquário esta faculdade mimética que os antigos supostamente possuíam vá retornar. Já não se trata mais de buscar, como era o propósito de Jung, comentários sobre o mistério da conjunção. Talvez seja mais interessante entender nas precipitações das soluções, escritos e rituais, cujos ingredientes e resultados desconhecemos, o desvelamento de marcas. Mesmo que se lesse Giordano Bruno como autor de uma época perdida, isto serviria de alerta para que mesmo que o mundo possuísse uma lógica ou uma lei maior, já não seríamos capazes de conhecer seu funcionamento. Assim, prescrições de filósofos não mais poderiam levar em conta as antipatias e inconveniências dos compostos. No entanto, dado que a constatação da separação entre sujeito e objeto impossibilita a existência de um época anterior em que ambas as noções coincidiriam (já que só o fato de pensar em um sujeito já pressupõe a sua separação), não se pode mais pensar na possibilidade de ser mago, mas apenas feiticeiro, o qual não perde tempo atrás de pistas acerca da origem da junção entre intelecto e matéria, do significante e do significado ou do sujeito com o objeto; sabe que nem mesmo ele domina as conseqüências de seus atos e desconfia de sua própria posição de autor. O feiticeiro, mesmo na era da pobreza de experiência, compreende que nas experimentações e ritos, que não se comunicam mais com os deuses, pode haver uma centelha de mudança ou desorientação do curso do sentido, ou seja, uma impressão em nossos textos e representações que muito mais testemunha o mistério da separação do que o da conjunção.

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