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II - OS GATOS DE ROMA
Vila Julia – Sonambulismo da História


É aconselhável se aproximar de Vila Júlia em fiacre aberto ou a pé e ao primeiro contato visual, sorrir e gracejar à companhia do sexo oposto se dirigindo ao céu azul e ao ar leve e apontando alegremente para os ramos da vegetação que enquadram o portão da entrada.

O visitante motorizado iniciaria a sua visita fora de ritmo com o mundo visitado e o cheiro de gasolina interfere com a tranqüilidade do céu azul destruindo o perfume exalado pela vegetação. A própria morfologia do veículo a motor perturba as relações rítmicas dos volumes que se apresentam à aproximação.

A companhia do sexo oposto é útil porque provoca a polarização dos sexos e esta precipita o salutar gracejo natural cujas caretas resultantes aparecem como resíduo e sobrevivência da própria luta entre os sexos; resíduo da fera antiga em atitude de ataque e raiva que é visualmente interpretada como uma atitude amável para com a paisagem imediata.

Esta bipolarização é aconselhável porque sendo de natureza basicamente sexual coloca todo o organismo em estado de alerta, de expectativa e agitação ampliando em magnitude e espécie a sensibilidade e a receptividade para com o mundo em frente.

Evite o uso de guias, pois uma terceira pessoa alheia a idéia de visitar diminuiria a sensibilidade do visitante para com a paisagem imediata e aquilo que conta em Vila Julia é precisamente a qualidade arquitetônica e a expressão estética que seriam perturbadas por informações cronológicas de um guia.

A qualidade arquitetônica e a expressão estética são sentidas por – ao que parece – um processo de associação de idéias com camadas filogênicas do inconsciente coletivo. A natureza da emoção estética só pode ser localizada numa das encruzilhadas filogênicas. As emoções estéticas tomam parte nas mutações revolucionárias que conduzem à eclosão do homem como indivíduo e por esse motivo devem ser localizadas nos pontos direcionais da filogenia. A emoção estética não é explicável por um raciocínio lógico ou pertencente ao mundo imediato da vida e da consciência... e não deve-se tentar fazê-lo sob pena de desperdiçar um precioso tempo sem resultados. A emoção estética deve ser considerada como uma brecha nas malhas da consciência e do mundo organizado e estabelecido, como um rompimento do dogma diário: é como abrir uma janela para um outro mundo.

Não discuta com o cocheiro do fiacre, pois pode perturbar os laços afetivos que começaram a nascer no visitante já em primeiro contato com Vila Julia. Um cocheiro de fiacre geralmente é um personagem alheio às emoções do visitante e pertence ao mundo pré-estabelecido da consciência imediata e do dogma e se encontra de tal maneira engaiolado nesse mundo que dificilmente respeitaria as emoções impostas pelo ambiente ao visitante. Somente uma ou outra vez na vida se visita Vila Julia e por esse motivo a visita deve ser contornada de todo o carinho estético tomando-se precauções para impedir que o devaneio da meditação venha a ser perturbado por qualquer realejo da vida diária. A meditação em marcha quando interrompida pelo processo “realejo” tem dificuldades em retomar o seu caminho e se ausenta do visitante, criando um vazio inexpressivo onde o visitante é ritmado a uma espécie de dança de São Guido provocada pelo nocivo processo de “realejo” da vida diária. Sair dessa dança de São Guido é salutar e retomar a meditação, embora com dificuldades, é aconselhável.

Vila Julia deve ser visitada de estômago vazio, antes de uma refeição, por exemplo, e o pretendente à visita não deve levar bengala, pois há uma necessidade de se sentir leve como um pássaro para enfrentar convenientemente e com contraste suficiente as pedras de centenas de anos. Vila Julia não tem idade definida porque é uma expressão estética e uma expressão estética pertence ao sonambulismo da História. Sem dúvida esse sonambulismo aparece para mostrar aos homens as grandes encruzilhadas da sua vida e aquilo que foi destruído e desapareceu sem traços e que não surge no sonambulismo, deixou de fazer parte essencial do organismo da História, não oferecendo a estrutura de uma encruzilhada.

Há um pé de louro entre dois jardins: esmague na mão algumas folhas aspire profundamente o perfume oferecendo-o a uma companheira de preferência de cabelos tingidos de cor de cobre brilhante, por motivos de contraste com as pedras antigas. Não dirija palavra articulada à companheira (podendo usar grunhidos se a decência o permitir) e conserve-a a distância, pois ela deve funcionar como um enfeite das pedras e não deve perturbar a maior comunhão telúrica estabelecida.

Não convém levar folhas de louro no bolso, nem mesmo por motivos sentimentais, pois o perfume não se conserva e a folha logo seca torna-se desagradável e inútil como um cadáver.


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 13 de janeiro de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.