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III - OS GATOS DE ROMA
As feridas abertas da arqueologia –
O europeu quer a guerra


Querer caiar de branco as fachadas de Roma deve ser considerada uma manifestação de pacifismo e talvez como uma manifestação de pureza da alma ou de infantilismo. É pacifismo não pela cor, mas sim pelo desejo de fechar as feridas da arqueologia. Esse desejo sul-americano, que aparece com freqüência alertadora, indica uma tendência continental. O pacifismo é peculiar ao sul-americano. O sul-americano não tem tradições e por isso não está preso aos laços afetivos do passado, não está preso a um artesanato que em si tem um sentido quase erótico mesmo porque o sul-americano não possui artesanato, não está preso ao escrúpulo moral que é uma conseqüência da tradição. A ausência de escrúpulo moral faz com que o sul-americano seja um indivíduo mal comportado, um ser freqüentemente com exuberância vulgar, às vezes um rastaqüera. Seria isto um futuro traço de superioridade? O escrúpulo moral é essencialmente um atributo do beato e o funcionamento da beatitude tem, como infra-estrutura, o espetáculo do passado.

Querer saber conservar as feridas do passado abertas ou perpetuar a arqueologia é um desejo de perpetuar o sofrimento e a dor e é peculiar ao europeu. Esse masoquismo do europeu, incitado em magnitude pelo grande espetáculo de dor do Cristo em feridas, crucificado e exposto à concupiscência dos espectadores, no teatro da História, impressionou o Ocidente orientando-o no seu comportamento ético.

As feridas são apresentadas na arqueologia da História como um espetáculo de beatitude e de contemplação, num espetáculo apropriado a produzir sofredores e masoquistas e, por conseguinte, um espetáculo capaz de formar piedosos aglomerando-os em torno da dor e da mutilação. As feridas, além de induzir a um desejo estético marcado pela sugestão heróica em forma de espetáculo daquilo que ficou e sobreviveu, as feridas não se alteram e funcionam cataliticamente para o europeu a fim de apontar rumo a um comportamento definido, algo com o frio trágico de um Calvino  ou de um Savonarola, um comportamento capaz de satisfazer a todos os escrúpulos morais, gerando este certo sentido ético, sem o qual a tradição jamais seria mantida. Toda ética européia provem desse espetáculo de dor e de sofrimento, apresentado à contemplação beática pela arqueologia e, em conseqüência, o europeu é um ser essencialmente masoquista, um homem que deseja sofrer e que baseia seu comportamento na recuperação do ser pela dor.

O escrúpulo moral do europeu ou a sua ética do dever, que é uma conseqüência da tradição, produz um jogo de comportamento que o leva ao masoquismo como forma obsessiva e em seguida neurótica. Esse comportamento funciona no europeu como auto-fustigação, como um desejo de dor e de sofrimento e o seu escrúpulo moral se transforma num prazer voluptuoso. A beatitude arqueológica que visa conservar as feridas abertas torna-se uma manifestação de masoquismo e narcisismo onde o contemplador se admira a si mesmo como herói sendo a sua pessoa transformada para esse fim em ruína arqueológica. O beato-contemplador é sempre conseqüência do escrúpulo moral. Há um destino da ferida na arqueologia européia; ela deve ser mantida aberta para conservar sempre vivo o espetáculo voluptuoso da dor, sustentando dessa maneira a ética proveniente dos escrúpulos morais gerados na tradição.

Expiação e castigo se encontram de maneira marcante na estrutura anímica do europeu e o seu sentido ótico, quando considerado como parte do fluxo do organismo social, se apresenta como uma imposição brutal da História, uma forma de ditadura da História, inevitável e pertencendo a um ciclo evolutivo e o seu escrúpulo moral é conservado e exercido como defesa própria. A ditadura da História é exercida por forças dramáticas de grande potencialidade visual e emotiva que aparecem, periodicamente, no panorama cultural, como por exemplo, o advento de Cristo, e que se prolongam o tempo necessário para sublimar uma angústia antiga ou corrigir erros que visariam prolongar a continuação da espécie. Um período masoquista não é necessariamente um período de auto-destruição mas sim de auto-expiação e de auto-castigo. No momento que passa, o europeu é eticamente um masoquista e seus escrúpulos morais se conservam e são provenientes do espetáculo da dor e talvez seja este um dos motivos pelos quais o europeu no seu íntimo deseja e acata a guerra como sendo parte da sua defesa anímica.


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 20 de janeiro de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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Notas para a reconstrução de um mundo perdido (I):
O sorriso inicial do Império Romano


Notas para a reconstrução de um mundo perdido (II):
Vila Julia - Sonambulismo da História



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.