VII - OS GATOS DE ROMA
O Sonho e o Herói
O espetáculo em frente ao túmulo do Herói era o sonho do homem primitivo e que se confundia com o seu estado de vigia. É a vida semi-consciente do homem primitivo que aparece nos atos delirantes do Herói em exibição teatral frente ao seu tumulo. A ação dramática do Herói era o modo de vida mais antigo do homem; continha uma intensidade afetiva no começo tão acentuada que aglutinava a vigia com o sonho em semi-consciência impedindo ao primitivo de distingui-los.
Há um ponto fundamental na estrutura do sonho que é também um ponto fundamental na estrutura do culto do Herói. Em ambos os casos não há convívio messiânico. O homem comum era para o Culto do Herói um mero espectador, assistindo a uma peça teatral, da mesma maneira como o homem adormecido é apenas um espectador do mundo. O delírio do Culto do Herói, aparecendo na sua ação pelo mundo, possui a mesma estrutura do sonho do homem adormecido. É esta feição do espectador embalado em sonho pelo espetáculo inacessível que localiza a origem do teatro no culto desenvolvido frente ao túmulo do Herói. A feição hipnótica e teatral do Culto do Herói – teatral no sentido de espectadores passivos adormecidos dentro de um sonho maravilhoso que seria o teatro – tendia, quando cultivada, para a formação de um temperamento onde o espectador, conservando dentro de si o mundo de sonho, não tentava convívio messiânico com esse mundo.
O sonho do homem de hoje, com suas imagens assintáticas e aglutinadas, com as suas associações afetivas (catatimicas) e que se identifica com o Culto do Herói é uma camada filogênica das mais antigas e que parece apontar para o comportamento do homem primitivo em estado de vigia. Esses restos de estado inferiores, essas sobrevivências filogênicas são, diz Krestchmer, o conteúdo da hipnose, do estado crepuscular histérico e das afecções intelectuais esquizotímicas.
Toda essa esquizotimia, esse delírio, essa histeria crepuscular conduziria o culto do Herói para a melhor formação da raça nórdica. As disposições hipnóticas são empurradas para o norte como conseqüência do abandono ao Culto do Herói na península. O fluxo da civilização cristã que se processava rumo ao norte empurrava os restos do culto do Herói para as faixas de raça nórdica que já o possuía, desse modo formando uma concentração dos laços afetivos do culto que eclodia e florescia com o aparecimento e o desenvolvimento do Gótico entre os povos da raça Nórdica, nos séculos XII e XIII.
Observa-se a esse respeito, que os característicos sobre-humanos do Herói Grego se reproduzem entre os povos nórdicos nos heróis teutônicos do norte enquanto que o culto em si é abandonado. Os heróis célticos são ainda mais fantásticos e mais sobre-humanos que os heróis teutônicos, o que talvez indicaria uma concentração de características raciais nórdicos entre os celtas.
O temperamento característico encontrado na raça nórdica tem a mesma estrutura dramática do Culto do Herói e o mesmo desenvolvimento panorâmico do mundo do sonho do homem de hoje e do mundo semi-consciente do primitivo que aglutinava a vigia como o sonho quase não distinguindo este da outra. O temperamento continha todo o animismo e toda a substituição simbólica do mundo que provocara a metamorfose mágica do esquizotímico-introvertido; este, funcionando como uma ilha flutuante, realiza o seu mundo independente do que há em redor.
O temperamento contém, na sua estrutura dramática, o teatro encontrado no gótico com um espetáculo ambivalente oscilando do puro ao impuro, uma fusão de imagens de rara expressão, aglutinadas em plenitude lúbrica, uma transformação afetiva e um deslocamento angustioso do medo sobre imagens assintáticas dispersas.
Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 17 de fevereiro de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera
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